Eles não podem passar a vida a desenhar pandas. E as letras?

Se ainda agora estávamos a iniciar o 3º período, já vemos o fim do ano a aproximar-se a passos largos e…. tanto ficou por fazer.

O sentimento que nos começa a invadir, de não se ter concretizado tudo o que queríamos, leva-nos a entrar numa batalha contra o tempo, em que as prioridades se vão centrando no que se vai enviar para casa, nas vivências que se queriam proporcionar e não se criaram, basicamente, nos planeamentos centrados no adulto e não nas crianças.

Mesmo que, tenham surgido propostas das crianças que nem sempre se tornam de fácil concretização, temos de saber reconhecer quais os caminhos que devemos seguir: aqueles que mantêm o interesse dos mais pequenos ou aqueles que consideramos pertinentes. No fundo, todos são pertinentes, mas nem todos os têm como o centro.

Este envolvimento claro, leva-nos a criar formas de estar nas nossas práticas que tendem a valorizar os espaços, não como cenários de aprendizagem, mas como pistas de corrida para alcançar o desejado final de ano com todas as competências adquiridas, com as evidências dos trabalhos realizados, com as aptidões alcançadas dos que vão transitar para o ciclo seguinte. Ansiedades…

Há pastas e dossiers espalhadas nas mesas, as gavetas com os trabalhos que se realizaram começam a ficar vazias e, os adultos, empenham-se em tornar os dossiers organizados o reflexo de um caminho espelhado apenas nas folhas A4. Quantos registos e evidências ficam pelo caminho… aqueles que não se tornam vivíveis, que se tornaram reais através das ações, das expressões, das relações. Aqueles difíceis de os tornar visíveis.

Com a aproximação do final do ano existem prioridades que tendem a mudar, centradas numa preocupação excessiva para a transição de ciclo, centradas na preocupação das famílias que exigem um maior empenho e envolvimento em atividades escolarizadas, que envolvem a escrita, o estar sentado, os números, as somas,… há uma preocupação acrescida e uma maior ansiedade para o próximo passo.

Os trabalhos surgem e levam a que estes últimos tempos sejam de esforço árduo, levam a que o termo brincar seja esquecido por momentos e a palavra trabalho seja o centro da ação. Alheios ao nosso foco de prática, tornamos estes momentos um espelho de ansiedades, de medos, levando a que a suposta proximidade com um preconceito da escola do 1º ciclo, seja construída de forma involuntária. E tantas são as expressões ditas e ouvidas

É verdade que o tempo se torna diferente. É verdade que as crianças acabam por passar mais tempo sentadas, é verdade que existe um programa a cumprir, metas e aprendizagens que se consideram essenciais, mas também é verdade que existem professores que lutam para que exista um ensino centrada nas crianças, nas suas dificuldades, nas suas potencialidades, na sua autoestima e valorização pessoal, centrada na relação positiva professor-aluno.

Estes últimos tempos agravam-se quando as comparações começam a surgir, quando as famílias e os adultos de sala, assumem comportamentos que os comparam, que levam a que exista, de um modo inconsciente, a noção de aluno-padrão. Esquecem., rapidamente, o caminho percorrido, as conquistas, dando lugar a termos comparativos que não espelham o percurso de cada um.

O tempo de respeito pela criança, pelo brincar, pelo seu envolvimento na organização e nas propostas lançadas dá lugar à corrida desenfreada de preparação das festas de finalistas ou de final de ano (seja lá o que isso é) quando são centradas numa aparência, na máxima: sempre fizemos assim. No entanto, durante o ano, considerámo-las como agentes ativos, como seres com vontades, mas agora, parece que nos esquecemos que essas vontades ficaram esquecidas, que esse envolvimento que defendemos ficou caído por terra, o respeito que lhes tínhamos de ser criança, ficou escondido atrás de uma cortina vermelha do espetáculo que andamos a preparar. Qual é a centralidade da nossa prática? Não é definida desde o primeiro dia do início do ano até ao último dia do ano letivo?

Há trabalho a fazer porque o fim do ano aproxima-se. A palavra brincar começa a desaparecer aos poucos, porque na nossa prática, continuamos a insistir em utilizar o termo trabalho, para referir algo que as crianças fazem, para referir algo que pode ser referido como uma potencialidade lúdica, uma máxima que se torna pesada logo desde cedo. Esta omissão de palavras eleva a necessidade de crescimento rápido, em que o brincar deixa de ser um tempo sério e se torna num momento de pura infantilidade sem finalidade, sem potencialidades, dando lugar ao termo puro e cru: trabalho. Tornamos, sem nos apercebermos, este momento que pretendia ser de brincar, como um tempo de ser adulto forçado, gerido por regras exigentes, por formas de estar afastadas da Educação de Infância.

Eles estão felizes e são felizes. Dizemos nós de um modo tão frequente, mesmo quando sujeitos a estas atividades tão direcionadas, a estes trabalhos forçados. É verdade, de facto poderão estar felizes, mas será que o estão a ser de forma pura e a viver o ser criança?

Apressem-se, há tanto para fazer e planear.

Uma família demonstra a preocupação: Ele não pode passar a vida a desenhar pandas. E as letras?

Que peso damos às palavras, às frases, no empenho e na atitude diária das crianças?
Que justificamos apresentamos que consolidam a nossa prática?

De um modo fácil e simples, destruímos o seu envolvimento, nas ações planeada mentalmente e expressadas, na grande maioria, no brincar, no desenhar, no empenhar-se em construir algo do seu desejo.

O tempo urge e existem pressões, existem faltas de compreensão do que é e deve ser o dia a dia da Educação de Infância. Estas expressões e vivências de última hora, realizadas para preencher a caderneta de cromos, levam-nos a tornar decisões centradas num desejo de ver concluído, e nos fazer olhar para trás e pensar na lista interminável de atividades realizadas, planeadas com o cuidado de preencher espaços.

No entanto, há espaços vazios, porque esses espaços vazios não surgem em cromos, em formas de registar. Esses espaços vazios são preenchidos pelas suas vontades, pelos seus desejos, pelos seus sonhos, pelo brincar que desenvolvem e que não são fáceis de registar. Estas noções que vão sendo transmitidas de um modo geral, que se tornam na nossa prática, tornam-se um hábito, tornam-se a representação da Educação de Infância, uma representação marcada pela exigência de tempos ocupados, marcada pela exigência do uso de todo o material disponível na construção de atividades embelezadas pelo olhar dos adultos e, em alguns casos, pelas mãos, torna-se numa exigência de escolarização precoce e, sem entender, cedemos a exigências afastadas da essência.

Mas o tempo é curto, é curto para os deixar ser crianças. Há uma preparação para a vida que pouco se torna valorizada nesta fase do campeonato.

Onde fica o permitir que sintam?

Onde fica o envolvimento? Onde fica o bem-estar emocional? Onde fica o brincar? Onde fica o respeito por cada momento do ano letivo? Onde fica o nosso papel de Educadores de Infância despertos para a criança e centrados na criança? Onde fica o ser criança?

Num texto anterior, referia, somos construtores de memórias, e estas memórias, que se gravam nos corações dos mais pequenos, nos cérebros, são aquelas que ficam para a vida, são aquelas que eles precisam de viver agora! São aquelas em que se permite o brincar, em que se permite que se aventurem, que se riam, que se relacionem, que criem memórias de forma livre, motivadas, empenhadas e participadas.

Mesmo nesta fase final, na reta final em que o cansaço já toma conta de nós, não se deixem enganar, não baixem os braços, não os cruzem. Mantenham as mangas arregaçadas, porque continuamos com o nosso projeto em curso, continuamos a ser intencionais no que fazemos, a dar voz aos pequenos, a fazer o melhor que eles merecem: ter alguém que acredita neles e sabe porque é educador de Infância, construtor e gestor de um currículo centrado no interesse das crianças e não no interesse dos adultos.

#umacaixacheiadenada

Rui Inácio 

Se gostou deste texto, poderá reler: Amanhã seremos construtores de memórias.



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