Carta aos pais das crianças que tive, que tenho e que terei

Carta aos pais das crianças que tive, que tenho e que terei... 

O ano vai a meio, a necessidade e o interesse das crianças vai alimentando o trabalho a desenvolver em sala, ou fora dela.


Os pais estabelecem metas, ansiedades, expectativas. Alguns, tornam-se conscientes de que o trabalho desenvolvido não pretende que seja escolarizado. Valoriza-se o brincar e, ao fim destes meses, quão rico tem sido permitir que brinquem sem medida. 

Bem sei que ficaram preocupados, pelo facto de ser homem, um educador homem. E que, quando me conheceram, nas famosas reuniões de apresentação, vos veio à memória casos de violência, preocupações sociais, mas, mais grave do que isso, preocupações relativas a casos de pedofilia. Todos estes sentimentos, enquanto me apertavam a mão e esboçavam um sorriso acompanhado de palavras: ”Prazer em conhecê-lo!” 

A todos, os que leem esta carta, digo-vos, com toda a certeza: “apenas” quero que os vossos filhos sejam felizes na sala onde estou, “apenas” fiz com que eles se sentissem bem nas salas por onde passei. Para as salas por onde irei passar, “apenas” uma garantia, o brincar será palavra de ordem, o bem-estar de cada um, uma prioridade.

Se é estranho ser um homem neste cargo? Sim, nas mentalidades mais fechadas poderá ser, mas quero vos deixar descansados, porque continuo a esforçar-me para manter o bom ambiente em sala, permito que brinquem e que tornem esse momento como um momento de aprendizagem rico em experiências, que vivam experiências sociais e se tornem sensíveis ao outro, aos outros, ao grupo. O brincar é a sua forma de expressão, não posso ignora-la, “apenas” valoriza-la! 

Faço questão de vos mostrar que, o meu desejo é fazer com que sejam crianças, em que o interesse dos vossos filhos seja priorizado e valorizado por todos em sala, crianças e adultos!

Descanso-vos (espero eu) e garanto-vos que a equipa de sala acolherá cada um da melhor forma, trabalhará em parceria com um único objetivo: o crescimento comum, a partilha de saberes e de conhecimentos. 

Seremos humildes, o suficiente, para reconhecer a potencialidade de cada elemento, em que, os desafiaremos a ir mais além, aprenderão a lidar com o erro e, ao invés de desistir, lutarão por arranjar soluções e em vez de experienciarem a frustração, viverão a audácia.

A todos os que ousaram a aventurar-se em sala, até então, foram-lhes dadas ferramentas para que pudessem crescer e viver os ciclos seguintes embalados no sonho, no desejo de querer e de saber mais. Foram as ferramentas que fomos dando, as ferramentas que levaram, levam e levarão após saírem do pré-escolar.

Bem sei que, estarão ansiosos por receber as prendas do dia do pai, da mãe, de Natal, da Páscoa, e todas as prendas que revelam o festejo de festividades. Mas, lamento desiludir-vos, serão "prendas" que refletirão o trabalho dos vossos filhos e se eles acharem que não é algo prioritário, que é algo que poderá não ser feito, assim será. Trabalho para agradar os vossos filhos, para responder às necessidades e interesses que apresentam diariamente, não às dos pais. 

Com a educação pré-escolar, vem as ansiedades da passagem para o 1º ciclo, depositando, logo desde cedo, uma responsabilidade enorme em cima dos educadores, com o intuito de que o trabalho que é feito desde os 3 anos, seja com vista à transição para o 1º ciclo. E, esse trabalho, passa pela realização de grafismos, aprender as letras, reconhecê-las, escrevê-las… Não, não passa. Brincar… deixem-nos brincar. Quanta ansiedade se pouparia se se conhecesse o que se pretende com o pré-escolar! 

Ao ir para casa, ao final dia, levo no pensamento cada situação vivida, cada conquista, cada dificuldade. Levei, levo e levarei situações problemáticas que os vossos filhos atravessam, angústias que as famílias nos transmitem e, mesmo em casa, fora do meu tempo laboral, passo horas a pensar de que forma poderei ajudar, de que forma, poderemos ir ao encontro das necessidades dos vossos filhos. Passo, por vezes, noites em claro, com um simples objetivo: arranjar soluções para problemas que não são meus, porque além de educador dos vossos filhos, fui, sou e serei amigo de cada um. Fui, sou e serei sensível aos seus problemas e às suas necessidades. 

Se no final do ano, anseiam por ver os trabalhos que eles fizeram, e que, se encontram guardados nos dossiers, nas capas e caixas feitas pelos adultos, lamento informar-vos, vão praticamente vazios. 

Como poderemos registar os esforços que fazem para melhorar o movimento, as aventuras das construções, as canções, as danças, as representações, as modelagens, as dificuldades de linguagem ultrapassadas e todas as atividades impossíveis de registar que acontecem no dia-a-dia?

Ao final do ano, fiquem satisfeitos porque as oportunidades que os vossos filhos tiveram, que têm, que terão, estarão evidentes, nas atitudes, nos conhecimentos e aprendizagens adquiridas e não nos dossiers. Esses, são, na sua grande maioria, registos de expressão plástica... 

Viveram ao longo destes tempos, vivem ao longo deste ano, viverão ao longo dos próximos anos, momentos de aprendizagem, momentos cheios de BRINCAR. 

Certamente, não estaremos de acordo com tudo o que acontecer, com cada palavra que se disser, com cada atitude que se tiver. Defenderão, sempre, a perspetiva do vosso filho, mas chegaremos ao diálogo e, transmitiremos essa atitude aos vossos filhos, que o diálogo é a solução para os problemas. Eu defendi, defendo e defenderei o seu filho e todos os restantes da sala. 

Enquanto educador, fui dando o meu melhor e, mesmo errando, reconheço que foram eles que me fizeram mudar a minha prática, são eles que me fazem agir ao longo do ano. É o meu percurso que me faz acreditar no que acredito, que me faz ser quem sou... E o que serei ao longo do tempo. 

A vós, pais, permitam que os vossos filhos cresçam felizes, permitam que eles sejam crianças, exijam que, em creches e jardins-de-infância, o brincar seja palavra de ordem, e que, esse comportamento, seja reflexo de felicidade, seja reflexo de que os educadores e os auxiliares permitam que os vossos filhos sejam crianças. Permitam que eles questionem, que encontrem respostas, que se sintam desafiados, que errem, que sejam humanos, mas mais importante... Que sejam crianças. 

Levarei a todos, os que se cruzaram, cruzam e cruzarão comigo, na minha forma de ser, de estar e de agir. Cresci, cresço e crescerei. Aproveitei cada oportunidade, aproveito, e aproveitarei para me tornar exigente comigo próprio, desafiando-me a ir mais além e mostrar, a quem não vê que a educação de infância é sinónimo de brincar e não de um ciclo escolarizado.

O educador que foi, que é e que será... 

#umacaixacheiadenada

Rui Inácio 



Comentários

  1. Texto perfeito! Acho que nunca li um texto que se quadenasse tanto com aquilo que acredito e tanto falo no meu dia a dia... Sempre que tenho opurtunidade debato este assunto, nas mais variadas formas... Porque sim, eu acredito na mudança de um paradigma que morreu há muito! Ouço com muita frequência que, hoje, as crianças são muito difíceis. Não, não o são! O sistema e a sociedade é que está desajustada à realidade. Bem espremida a situação da Educação em Portugal, é que apesar do conhecimento, "desenvolvimento", de estudos e mais estudos científicos, e , mesmo com a dita Flexibilidade a reboque do novo decreto lei, continua-se a exigir que seja a criança a fazer todo o esforço de adaptação à escola. E afinal, qual é o esforço da Escola para se adaptar às reais necessidades da criança?
    Sou mãe e tenho uma criança no 1°ano e enquanto pais não tivemos pressa, uma vez que entrou com 6 a fazer os 7, precisamente para poder ter mais tempo para brincar e ser criança. Posso dizer-lhe que optamos por inscrevê-la na Pré de uma escola primária, entre a transição do Jardim de Infância (IPSS) e o1° ano Escola Primária julgando que estaríamos a fazer o melhor ... Não foi bem assim... Não correu mal mas também não foi de encontro ao que esperávamos. Assistimos a um excesso de escolarização e sistematicamente abordava-se o tema de que era preciso preparar para o 1°ano...escusado será dizer que senti necessidade de ter algumas reuniões com a Educadora e lá nos fomos adaptando sempre com cordialidade e cooperação. Foi exigente mas no final, a Educadora acabou o ano a dizer que admitia que fazia falta às crianças de 0oje mais pais assim e que lamentava muito que a nossa criança não continuasse na mesma escola pois nunca a iria esquecer ... Peço desculpa por este meu longo desabafo. Obrigada por este magnifico texto e por acreditar em fazer diferente! Bem haja.

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    1. Fiquei bastante contente pelo seu comentário, agradeço-lhe de forma sincera a sua intervenção, a sua partilha. Acredito que a Ed. de Infância tem um potencial incrível, que poderá ajudar os restantes ciclos no desenvolvimento de práticas transversais e flexíveis. A escolarização precoce, é algo que me mete alguma confusão. pretende-se antecipar um momento que não deve ser antecipado e, infelizmente, é isso que se valoriza. Mas, vamos mostrando que o importante não é isso, luta-se contra essa maré! Muito obrigado pelo seu comentário!

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  2. Adorei o seu texto... concordo completamente com tudo o que diz... a educação pré escolar é a altura de aprender mas a brincar... Já basta quando iniciarem o 1°ciclo onde terão que deixar de ser 'crianças' para serem 'robôs'.

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    1. É verdade, existe um fosso enorme entre o Pré-escolar e o 1º ciclo, há muito a aprender com a Educação de Infância, por muito que nem sempre se reconheço, A educação de Infância torna-se um bom exemplo da forma de trabalhar baseado nos interesses e motivações dos alunos. Obrigado pelo seu comentário!

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  3. Adorei o texto. Parabéns e obrigada por exercer está nossa profissão desta maneira.

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário! Faço aquilo em que acredito é por isso que luto todos os dias! :)

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  4. Parabéns e obrigada por estas palavras tão verdadeiras! Precisamos urgentemente de "atualizar" a educação e, sem dúvida, que a começar no Pré Escolar!
    Obrigada por tornar o mundo dessas crianças melhor e mais feliz, todos os dias!
    Tudo de bom.
    Joana

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  5. Parabéns e obrigada por estas palavras tão verdadeiras! Precisamos urgentemente de "atualizar" a educação e, sem dúvida, que a começar no Pré Escolar!
    Obrigada por tornar o mundo dessas crianças melhor e mais feliz, todos os dias!
    Tudo de bom.
    Joana

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  6. Tenho a sorte, ou melhor, a minha filha tem a sorte de ter tido uma educadora excepcional, com o mesmo pensar que descreve. Brincar, brincar, brincar! Está a dias de ingressar no 1⁰ ano do 1⁰ ciclo e eu não posso estar mais descansada. Tenho a certeza que todo o brincar do jardim infantil vai dar bons frutos!
    Obrigada Ana Portugal!
    Obrigada tb a si por este texto e pelas suas crianças. De certeza que são imensamente felizes!

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  7. Como sempre Rui Inácio , assino por baixo em tudo o que escreves! Grata 💙 pela generosidade e disponibilidade sempre presentes nas tuas palavras! Patrícia Vasconcelos

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