Vende-se: intencionalidade educativa e/ou projetos! MP

Hoje decidi abrir as caixas que guardo no sótão. Decidi tirar cada folha, cada manual, que ali guardo miraculosamente, porque preciso de encontrar espaço livre e de lhes dar alguma rentabilidade.

Apesar de serem materiais que guardei e preparei com todo o cuidado para as crianças da minha sala, decidi torná-las públicas e partilhá-las. Partilhá-las não, vendê-las, que os tempos estão difíceis para todos e gastei tempo a preparar todos estes documentos.

São verdadeiras obras pedagógicas, que resultaram do meu estudo, das minhas formações e da construção e adequação constante às crianças da minha sala. Continuo a valorizar o que dizem, o que fazem e tenho a intenção de tornar o meu trabalho um reflexo do que elas necessitam. Posto isto, após muita observação e valorização das crianças, pus mãos à obra e, estes projetos, são reflexo da minha intencionalidade, são reflexo do meu empenho na minha profissão, são reflexo de que, antes de os aplicar, tive de observar e de planear, e após a sua ação e aplicação é tempo de avaliar e de guardar tudo nas caixas do meu sótão.

Quanto tempo se encontra aqui guardado?
Quanto tempo despendido para que tudo isto se tornasse real?
Quanta intencionalidade, em bruto, guardada nestas simples caixas de cartão?

Estes projetos que me tornaram gestor do currículo, que me fizeram refletir naquilo que as minhas crianças necessitavam, tornaram-se verdadeiras peças únicas a levar para aquelas quatro paredes, para aquela sala, que digo que é minha, e para aquelas crianças, que insisto em dizer que são minhas.

Continuo a acreditar que desempenho o meu papel de educador da melhor forma, construindo excelentes ferramentas de aprendizagem, que me fazem ver resultados fabulosos, tornando a planificação coerente e refletida nas avaliações, através das percentagens que dão a quantidade de adquiridos e não adquiridos. Estes projetos tornaram-se obras de orgulho e que enaltecem tudo aquilo em que acredito. É tempo de as rentabilizar.

Mas é tempo de começar a partilhar, e essa partilha pressupõe que a minha prática chegue a várias salas, a várias crianças, porque resultará de um modo incrível. E, todos os que as adquirirem vão poder observar os fabulosos resultados que vão atingir, mas principalmente, tornarão as crianças preparadas, de um modo incrível, para o que aí vem.

É uma venda de garagem, onde os projetos que criei, os materiais pedagógicos pensados para as crianças da sala, vão permitir que outras crianças, de salas de diferentes, de outros pontos do país usufruam deles e assim, possam crescer felizes, com materiais que eu considero de grande utilidade e de grande potencialidade/intencionalidade pedagógica.

Em tempos, como os de hoje, recorro às redes socais e torno cada intervenção como uma forma de vender o produto que acredito ser benéfico para todos. Na lista constam imagens que recolhi da internet, projetos pedagógicos que deram um trabalho enorme na fundamentação, na construção de objetivos, na caracterização do grupo, na organização do ambiente educativo, mas que se tornaram muito funcionais, e por isso, estão disponíveis para compra em PDF, ou em mão.

No cardápio disponível existem, ainda, estratégias eficazes para crianças, baseei-me na minha experiência e por isso, partilho-a, aliás, vendo-a. Apesar de já terem cerca de 5 anos, as estratégias serão eficazes, basta ouvir o que as crianças nos dizem para as conseguirmos aplicar. Foram experimentadas com as minhas crianças de há 5 anos, que em tudo são semelhantes (semelhantes em nada).

Vendo sonhos e facilito o caminho para os alcançar, é esse o meu lema.

Estas ferramentas tornam-se fundamentais nos tempos que atravessamos, são projetos que facilitam o trabalho e instrumentos que, apesar de fazerem parte da nossa profissão, na construção consciente do crescimento e aprendizagem das crianças, aplicamo-los a troco a dinheiro.

Tantas questões que poderiam ser levantadas, mas, haja bom senso.

Onde fica a intencionalidade do educador?

Reparem, não é por ser um educador a construir tais obras de arte (projetos educativos, projetos pedagógicos, estratégias de tamanho único,…) que temos de nos tornar vendedores de algo que nunca deveria ser vendido. Cada grupo é um grupo, cada criança, uma criança. Mas ainda assim, quer sejamos nós a vender, quer sejamos nós a comprar, continuamos a utilizar as frases tipo: eu escuto as crianças, eu respeito-as, cada criança é uma criança, eu faço-as felizes… 

Que adequação fazemos? 
Será que a fazemos?

Imaginemos que nos encontramos todos num supermercado, com inúmeros pacotes de bolachas, com inúmeras marcas e sabores disponíveis nas prateleiras. No entanto, mesmo estando à nossa disposição, por ordem do gerente de loja, só podemos comprar um único pacote de bolachas, sem qualquer poder de escolha. Todos compram pacotes iguais, independentemente dos seus gostos, da sua cultura, do seu contexto familiar, do seu conhecimento, das suas vivências e do que lhes poderá provocar no futuro. Continuamos a sair dali felizes com um pacote de bolachas e será esse o único que será distribuído pelas crianças que teremos à nossa frente. Crianças intolerantes a glúten, a ovos, a chocolate,… todos têm de as consumir. Exagerado? Talvez. Agora imaginemos o que fazemos quando impingimos estes projetos que compramos sem qualquer intencionalidade e obrigamos as crianças a ingeri-los, gostem ou não.

A pandemia traz-nos o melhor e o pior de cada um, traz-nos esta incoerência nas palavras e mais do que isso, nas ações. Eu acredito nas crianças, eu escuto-as, eu valorizo o brincar, eu respeito-as, mas, vendo os meus materiais pedagógicos a um preço irrisório. Mas vendo e, independentemente, daquilo em que acredito, farei disto um negócio, pronto a ser aplicado pelas salas do país, tornamo-lo um negócio uniforme. Infelizmente, não só em tempos de pandemia…

Onde fica a nossa ética profissional?
Onde fica a nossa capacidade de justificar o que fazemos e, mais do que isso, porque o fazemos?

Esta transmissão do papel do Educador é tudo aquilo que não queremos, que não precisamos. Respeitar as crianças não é abraçá-las, beijá-las e assumir um discurso fofinho e cheio de diminutivos. É reconhecê-las como alguém capaz de escolher, de falar, de ser escutada, resumidamente, (frase conhecida e muito pertinente) é permitir que sejam o agente ativo da sua própria aprendizagem. É permitir que sejam felizes com momentos únicos, porque elas merecem que tenhamos esse tempo de observação, de cuidado, de atenção, de criar algo único para cada uma delas, para o grupo que temos diariamente. É permitir que vivam um currículo construído, pensado, planeado e avaliado de um modo consciente e definido, unicamente, para as crianças que temos.

Ser educador é permitir, sim, que se envolvam, que abracem, que beijem, que sintam relação e façam parte dessa relação. É escutá-las. É olhar para o que fazem diariamente e reconhecer os seus esforços, as suas tentativas, o modo como ultrapassam os erros e aprendem com eles. Esses momentos são os que tornam as nossas planificações únicas, porque assentam nas necessidades reais, nos interesses, nas dificuldades das crianças que estão à nossa volta. Não assentam nas crianças da sala ao lado, não assentam numa prática fastfood, num projeto, numa estratégia que acabei de comprar, sem qualquer significado, sem qualquer intuito, sem qualquer intencionalidade para as crianças da sala.

Estes projetos que se compram não espelham o permito que sejam felizes, não me fazem olhar para o brincar como um modo de permitir que construam aprendizagens, conhecimentos fundamentais que envolvem um nível de empenho elevado para se concretizarem as suas planificações mentais, os seus planos sem fim, que se constroem ao longo do brincar… esses projetos não se compram e não são respeitadores do ser criança.

Sim, revolta. 

O que justificamos aos pais quando assim o fazemos? 
Quem somos nós para fazermos relatórios de avaliação baseados em itens que não foram sequer pensados por nós, que não proporcionaram o respeito, a individualidade, as expectativas das crianças e das famílias?

Quando forem questionados respondam, e tenham essa humildade, apesar de me pagarem para isso, para ter intencionalidade pedagógica, o manual que comprei não tinha a resposta as suas expectativas e muito menos às suas dúvidas. A minha intencionalidade foi comprar algo que foi pensado e escrito por alguém, facilitando, assim, a minha prática.

A Educação de Infância não é uma venda de garagem, de intencionalidade educativa ou de projetos e de estratégias, é partilha, é crescimento comum. É ser consciente no papel que temos de assumir. Não é sermos compradores de projetos escolarizados e afastados do ser criança.

E se houver dificuldade de construção de projetos, de estratégias, não é através dessa compra que tiraremos as dúvidas, mas sim através da partilha, do debate, do diálogo, da construção e cooperação profissional entre pares…

A Educação de Infância não é uma venda de garagem.


#umacaixacheiadenada


Rui Inácio


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