Não leiam, porque já não é atual!

No meu tempo tudo era diferente. 

À hora marcada todos chegavam e deixavam os casacos e os pertences nos cabides à entrada da sala. Em silêncio entrávamos na sala, de modo a que o dia começasse tranquilo, sem interrupções e/ou choros. 

O quadro de ardósia tinha a data escrita a giz branco, com a letra manuscrita, desenhada de um modo cuidado pelo Professor. O exemplo tinha de ser perfeito. Junto ao quadro, um estrado em madeira gasta, ajudava-nos a subir para melhor desempenharmos o que nos era pedido. Ao lado deste quadro o Mapa de Portugal aparentava estar velho, mas as cores sumidas, ainda nos permitia distinguir tudo o que ele continha. 

Ao fundo da sala, estava a cana que acompanhava quase toda a altura da parede, desde o chão até ao teto. E em algumas vezes nos afagou a cabeça, e por vezes até as mãos. Nesses momentos fazíamo-nos fortes para que as lágrimas não nos corressem pelas faces, assim não seríamos alvo de chacota infantil.  

Falar enquanto o Professor falava, dava-nos direito a que nos fosse afagada a cara de um modo, "suave". 

As idas ao quadro faziam-nos estremecer, como se de um sismo se tratasse, sem que o chão fosse aquele que hoje queremos que os alunos pisem, um chão seguro e confiante. No estrado junto ao quadro junto ao quadro permanecia um pó leve e branco, era o rasto do giz utilizado por todos aqueles que obedeciam às ordens dadas. As respostas dadas, mesmo com o receio na ponta dos dedos, tinham de ficar evidentes e bem visíveis. A força que se fazia no pau de giz, quebrava-os e estes multiplicavam-se, mesmo que o fizéssemos com cuidado. E até nisso havia receio. Ao escrever, aquele som arrepiante saía do pau de giz, sem que soubéssemos como o fazíamos, levando a que se soltassem uns risos envergonhados no meio da plateia. Os apagadores de madeira, por vezes voavam até às mesas, tornando-as em verdadeiros aeroportos, para que todos se mantivessem calados e concentrados.

A cadeira do Professor era detentora de um poder incrível. Ai daquele que lhe tocasse. Mas num dia, em que a boa disposição tinha invadido aquela sala, ainda nos passeamos, em camadas, pela sala naquela cadeira de madeira com rodas, naquele chão de tacos de madeira, reflexo de muitos pés que outrora o pisaram. Quanta história por ali passou, quantas vidas por ali passaram, quantos por ali cresceram e se tornaram no que foram, no que são e no que serão. 

No meu tempo o Professor era tido como aquele que transmitia, era o que tinha o poder de dizer o certo ou o errado, era aquele que passava todo o seu conhecimento. E nós nem coragem tínhamos para questionar ou dizer algo que não percebêssemos. 

Realmente, os tempos mudaram. Mudaram e muito. 

Mas, no meu tempo é que era, não havia cá as modas de se fazerem ouvir as crianças, nem de se reconhecer nelas o agente ativo da sua própria aprendizagem. Escutar? Escutava e de que maneira, o que me diziam, porque jamais pensaria em pedir para fazer de um modo diferente. 

E, quando na hora do lanche, nos sentávamos a preparar o pão para que todos pudessem lanchar, os nossos olhos brilhavam quando viam as embalagens de chocolate para barrar, e rezávamos para que, quando chegasse a nossa vez, o colega carregasse com o chocolate no pão, para comermos chocolate com pão e não o contrário. 

Ai, no meu tempo, … 

No meu tempo lembro-me de chegar à hora do lanche, de comer a todo o vapor, e de aproveitar a rua para brincar como se não houvesse amanhã, e passávamos tanto tempo na rua, que parecia que a rua era a melhor forma de aprendermos. Não nos diziam, vão lá apanhar ar, vão descarregar energias,… mas quando começávamos a ouvir, um, depois dois, depois três, e por fim quase todos os alunos da escola a gritar “É entrada! É entrada!”, sabíamos que o intervalo tinha terminado. Corríamos à volta da escola, a gritar, com o objetivo de que todos ouvissem, e por fim, pudéssemos entrar, perfilados, ou no meio da confusão, para assim, podermos regressar às nossas cadeiras e mesas, para que todos ficassem concentrados e empenhados nas tarefas dadas a todos os alunos da sala. Como era perfeito o momento do intervalo. O tempo passava a voar. E, a voar com ele, voávamos nós na nossa imaginação, que se limitava a ficar lá fora, fora das salas. 

Um dia não ouvimos ninguém a gritar que o intervalo tinha terminado, tal era a nossa envolvência na brincadeira e no jogo que estávamos a ter. O parque estava vazio, e, quando percebemos que estávamos atrasados, corremos como loucos em direção à porta, com o coração a palpitar, com as pernas pouco seguras, e das nossas bocas surgiu um pequeno clamor, baixo, pedimos desculpa, não ouvimos. 

O chão foi quem nem ajudou a corrigir este pequeno momento. Sentados, cantávamos a tabuada do 5, enquanto puxávamos o corpo fazendo-o movimentar-se, por de cima daqueles tacos de madeira um pouco soltos, até chegar à parede oposta. E se, em algum momento, nos escapasse algum número, voltávamos ao início e a canção começava. 

Ai, no meu tempo… 

Quando a escola terminava, demorávamos uma eternidade a chegar a casa, porque nos distraíamos com o rio, com os cágados, com os terrenos e com os torrões de terra que se tornavam verdadeiras naves, ou munições de uma batalha campal que tantas vezes nos atingiam. Tantas vezes saímos da escola sujos. Criávamos grupos que se deslocavam para a escola ou para casa. Começava um, juntava-se outro, e outro e, pelo caminho, lá nos entretínhamos com as pedras, com os empurrões, com as lutas, com as corridas, e por vezes, com as frutas prontas a apanhar nas árvores que estavam junto à estrada. E quando assim o era, pernas para que vos quero, corríamos sem que o dono nos apanhasse ou nos visse. E que bem sabiam aquelas frutas e aquelas aventuras. 

No meu tempo, fazíamos as fichas, os ditados e cumpríamos à risca o que nos mandavam. Eram trabalhos iguais para todos, e ninguém tinha um trabalho diferente porque sentia mais dificuldade ou facilidade. Os carimbos a tinta preta marcados nos cadernos, tão característicos, orientavam o trabalho e as linhas que não podíamos trespassar. Tudo tinha de ser perfeito, e perfeito tudo tinha de sair. 

No meu tempo quando por mau comportamento, ou quando não terminávamos a tempo as fichas de avaliação, permanecíamos os intervalos, sentados, a tentar terminar aquele árduo trabalho, ansiosos por poder respirar o ar da brincadeira, da aventura, do desafio e da socialização. Por vezes, a cadeira e a mesa eram os melhores companheiros, quando solitários permanecíamos na sala a olhar para o distante, enquanto nos impediam de sair por algum erro cometido. 

Mas o tempo mudou… e agora já não se permite que isso aconteça. 

No meu tempo, permitia-se que todos brincássemos na rua, que chegássemos a casa ao anoitecer, e ao longe, ouvíamos uma voz familiar a gritar com todo o ar que tinha nos pulmões: “O JANTAR ESTÁ PRONTO!”. Ao som deste toque, corríamos, despedíamo-nos e esperávamos que no dia seguinte nos encontrássemos todos para poder continuar a fazer o que mais gostávamos, brincar. 

Mas, isso foi no meu tempo… 

No meu tempo as salas eram sem cor, espelho da rigidez do ensino e de uma educação pouco centrada naquilo que nós, alunos, dizíamos ou queríamos. Quanto menos distrações, melhor. Não olhavam para nós como alguém que tinha interesse, curiosidade, ou simplesmente, vontade de descobrir. No meu tempo, não tínhamos a oportunidade que temos hoje, de poder dar aos alunos espaço para que participem, para ouvir a sua voz e perceber que as suas fragilidades são promotoras de oportunidades. 

No meu tempo era assim, mas agora não tem de ser. 

A escola que tínhamos e que temos, mudou, mas, pelos vistos, continuamos acorrentados ao que foi, e insistimos em tornar o que foi, naquilo que ainda é. Sempre foi assim, e assim sempre será. 

Mas esta escola era a que se vivia, que hoje já não se vive. É uma escola que continua a mudar e que já não olha para os alunos da mesma forma. Felizmente.

Era a escola das fichas, das avaliações iguais, dos alunos tidos como semelhantes, do Professor como transmissor de conhecimento, do aluno como recetor, sem a capacidade de questionar ou de sugerir. Era a escola da Matemática e da Língua Portuguesa, da rigidez e da sobrevalorização do erro. Era a escola que não permitia o pensamento crítico, nem a possibilidade de escuta ativa dos alunos. Era a escola que vivemos, que nos fez crescer e reconhecer que deve mudar, que tem de mudar. E mesmo a quem mantenha as práticas desta forma, que assim o faça. Mas não o faça porque custa mudar, faça-o porque é a educação que acredita. 

Mas, se mesmo assim persistir, questione-se, porque faço o que faço? Estarei eu a adequar-me aos meus alunos de hoje, ou aos do meu tempo passado? 


#umacaixacheiadenada


Rui Inácio



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