"Vá lá, é só mais uma colher de sopa. (...)"

Hora de almoço e a história repete-se, diariamente: pratos iguais, quantidades iguais, tudo é igual, independentemente da idade, das crianças ou do grupo.

A hora de almoço é, no fundo, um momento que acaba por “fugir” às responsabilidades dos educadores, não de todos. Há os que, mesmo não estando presentes, se mantêm presentes através dos diálogos, quer com as crianças, quer com os assistentes operacionais e monitores. Tudo de modo a que se resolvam e se solucionem possíveis necessidades. Há, também, os que fazem a famosa pergunta, “comeram tudo?”, ignorando tudo o resto, mais uma vez, o resultado é o importante. E há ainda, os que simplesmente se ausentam na hora de almoço e não procuram sequer saber o que se passou naquele tempo. É como se alguém tivesse apagado aquela hora da sua responsabilidade.

Pasmem-se, também somos responsáveis por esses momentos, e quão importante é mantermo-nos presentes e refletir/criar as condições para que tudo corra de forma plena.

De facto, estes momentos acabam por ser, na maioria, espaços de maior de confusão. Mas, mais uma vez, a Covid-19 veio fazer com que as enraizadas práticas fossem mudadas, nomeadamente, na forma como se sentam, no afastamento que criaram entre elas. Mas fazemos porque mandaram e seguimos à risca estas ordens, ou conseguimo-nos adequar a este movimento e torná-lo como um momento tranquilo?

Sabemos o quão difícil é este espaço, este momento. O tempo da criança fica de lado e valoriza-se o tempo do adulto, do cuidador. Há tempo a cumprir, o espaço tem de estar limpo, a pressa faz com que agarremos de colher em colher, para que todos comam ora a sopa, ora o segundo prato de forma rápida e eficaz.

Lá se vai o tempo tranquilo, o respeito da criança, a sua voz.  

Estes momentos de rotina, nomeadamente da refeição, não deixam de ser espaços importantes para a construção de conhecimento, de desenvolvimento de competências, de aproximação das crianças e, como se referia, de reconhecer as necessidades de cada criança.

As pequenas responsabilidades que podem surgir nestes cenários ajudam as crianças a construir uma noção de comunidade, de respeito e de dever em relação ao que é seu e aos outros. É certo que, ada a situação atual, torna-se uma dificuldade assumir essas tarefas, pelos condicionalismos que todos vivemos, mas mesmo tendo essas barreiras, não nos podemos esquecer que as crianças continuam a ter necessidades, ansiedades e até receios. Não nos podemos esquecer que cada criança continua a ser única, até nos momentos das refeições.

“Não quero mais

Ainda tens comida no prato! Despacha-te a comer tudo!”

Conhecemos assim tão bem as crianças, que nos pomos no seu lugar, no seu corpo e os fazemos comer até rebentar, sem respeitar o que sentem ou até as suas necessidades?

Sabemos que se torna uma afirmação exagerada, mas não deixa de ser uma realidade. O nosso conhecimento é assim tão aprofundado que nos faz obrigar os mais pequenos a comerem tudo o que está no prato, até quando a quantidade, é uma quantidade padrão, exagerada?

Criar momentos que se pretendem de harmonia são o contrário de os tornar como máquinas trituradoras de comida, que quase sem respirar, são obrigadas a consumir toda a quantidade de comida que se encontra no prato, seja ela em muita ou em pouca quantidade.

Eu não obrigo”, dizemos nós de um modo orgulhoso, dando a entender que, realmente, escutamos as crianças. Mas pensemos, ao disponibilizarmos os pratos de comida, muitas vezes, com uma quantidade de comida excessiva, estamos a sensibilizar as crianças para a comida que deixamos, para o desperdício alimentar?  Torna-se muito prático prepararmos pratos iguais, com quantidades próximas, ignorando a quem se destina, mas com a quantidade de comida desperdiçada, não fomentamos o cuidado por aquilo que recebemos. Se formos sensíveis a este ponto, tornamos estes pequenos momentos como uma aprendizagem, assim como todos, um modo de sensibilização e de apropriação de comportamentos e atitudes.

Reconhecemos o quão difícil é, porque mais uma vez se refere, as escolas estão organizadas de acordo com as necessidades dos adultos, estão definidas com os tempos dos adultos, com o que é imposto e não pode ser alterado: horários a cumprir, correrias que parecem não ter fim, adultos que não param e que saltam de mesa em mesa para ajudar quem precisa (e quem não precisa).

Se comem devagar, alertamos, “Vamos, despacha-te a comer, estás a demorar muito tempo, és o único que ainda não terminou a sopa!”, lá se vai o tempo individual, o ritmo de cada um! A corrida do almoço não pode parar!

A agitação torna-se normal, ora porque começam a conversar e não é permitido conversar, ora porque os pés não param, mesmo quando não tocam o chão e têm cadeiras que não são em nada apropriadas aos pequenos, ora porque, nem reconhecemos que, tal como os adultos, as crianças também precisam de socializar.

Quando os adultos se encontram em refeições, conversam, discutem, comem, ficam em silêncio, demoram… mas são adultos… já o ritmo das crianças terá de ser outro, o dos adultos. Por favor, não se esqueçam, há um horário, exímio, a cumprir, não são permitidas faltas, falhas e, muito menos, atrasos! E, já nem falamos das brincadeiras…

“Não brinques com a comida!... Não comas com as mãos!...”

E as estratégias? E os diálogos? E a intencionalidade educativa? E o envolvimento de TODOS neste momento?

Se tocam na comida poderão estar a experimentar a textura, a temperatura, a sentir, simplesmente. Mas nem sempre sabemos lidar como isso e, muito menos, entendemos esses momentos como potencialidades, no entanto, a curiosidade que revelam e demonstram nestes tempos, podem ser transportados para a sala, e não é nos diálogos em que se alerta para o comportamento, ou para o facto de não terem comido tudo o que estava no prato, mas sim, no desvendar e partilha das descobertas…

Se é fácil? Não, nunca ninguém disse que a educação de infância era fácil.! Se o disseram, enganaram-vos!

Mas voltemos a esta questão: as crianças podem ser envolvidas, os adultos podem, e devem, cruzar informação pertinente para melhorar o ambiente da refeição. A sensibilização para o momento da refeição pode e deve ser dialogado em contexto de sala, ser explorado e vivenciado por todos. Não esqueçamos o envolvimento das famílias! Nos diferentes espaços educativos, mesmo não estando presentes na maioria das vezes, os educadores devem pensar na transição feita da sala para o refeitório, devem pensar na forma como se poderá tornar num espaço que é de aprendizagem, devem vivê-lo e torná-lo presente nas práticas, porque ao reconhecer a importância deste momento, estaremos a tornar consciente mais uma oportunidade de empenho, de motivação para se envolverem e de crescimento das crianças.

Mas o cansaço, esse maldito cansaço, torna-nos verdadeiros robots dispostos a ultrapassar recordes de velocidade e de tempo, desde a entrada até à saída, nem que para isso, as crianças sejam esquecidas por uns momentos. De colheres em punho, segue uma cheia, segue, outra, até se ver o fundo do prato. E, por vezes, torna-se tão rápido que quase os deixamos sem tempo para respirar entre colheres.

Mas depois disto, faça-se a avaliação:

A criança X não agarra na colher de forma autónoma no momento de refeição. Não adquirido.

Observação: O adulto não permitiu porque estava com pressa.

A criança Y demora demasiado tempo para concluir a refeição.

 Observações: Aproveita o momento da refeição para brincar com a comida.

Mais uma vez se sublinha, o envolvimento das crianças na rotina é fundamental.

Neste sentido, damos espaço à experimentação, a planificação?

 A criação de rotinas, no início do ano, não pressupõe estagnação. Reconhecer que as rotinas não se adequam ao grupo, é ser sensível ao mesmo e dar o sentido real à palavra intencionalidade, às palavras escuta e voz e, tornar a planificação uma realidade, e não um elemento utópico afastado do grupo que a usufrui. Porque mais difícil do que construir uma planificação adequada ao grupo, é utilizar uma organização que não é alterada ao longo de todo o ano.

Mas é hora de almoço e não há tempo para reflexões e, muito menos, para adequações. O almoço está servido, com quantidades iguais, porque são crianças e têm de se alimentar. Para chegar ao refeitório vão em comboio pelos corredores, porque assim não há perigo de fuga. Quando chegam e se sentam, entram nesta corrida louca e desenfreada. A sopa está servida e todos têm de ser rápidos, se assim não forem lá vamos ouvir, ora uma, ora duas, ora três vezes,… ora as vezes necessárias  Vá lá, é só mais uma colher de sopa. E despacha-te a comer, estás a demorar muito tempo.”

E assim, lá se vai mais um momento que poderia ser harmonioso, mas que acabou por se tornar numa verdadeira corrida…

O prémio? Nunca souberam qual era! Só ouviam estas palavras sempre que terminavam, “Boa, agora come o segundo prato”.

 

Quem nunca? … quem nunca…

 

#umacaixacheiadenada

 

Rui Inácio

Comentários

  1. Felizmente na instituição onde trabalho os/as educadores/as estão presentes na hora da refeição... e são os/as educadores/as que fazem o empratamento...e fazem para a criança X diferente daquele que empratam para a criança Y... Porque a X come mais e adora legumes e a Y faz resistência aos legumes e a existência dos mesmos no prato passa por uma negociação entre criança e adulto... Um pequeno exemplo...
    Adorei o texto e fiquei aí dá mais feliz de perceber que ali onde trabalho estamos no bom caminho .. a melhorar temos a questão do tempo... Ai o tempo...
    Obrigada Rui

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