Leitura da Epístola de Santa Natureza aos Educadores

Irmãos, 

Naquele tempo foi criada a natureza com tudo o que havia de mais belo.
 
Havendo tal jardim, belo e único, foi povoado pelos seres humanos, de modo a que o tornassem um local de explorações, de aprendizagens e de respeito entre todos. Eram felizes, em tempos felizes. 

Com o passar do tempo surgiram os desafios e as provações, surgiram as angústias e as desilusões. Os seres que coabitavam nesse paraíso deixaram de o respeitar e tornaram o  espaço de liberdade, exploração, criatividade e crescimento num espaço cinzento sem cor, sem terra, sem árvores e sem a liberdade que os caracterizava. Os tempos mudaram, viviam agora centrados em si mesmos, sem permitir o crescer livre, o crescer divertido e ousado. Esse crescer deu lugar à estrangulação da liberdade, da criatividade, da escolha e da opinião. 

Nos espaços, outrora verdes, cresceram blocos de cimento a que chamavam casas. Aí, acolhiam as famílias que tornaram os pequenos compartimentos isolados do que havia de melhor à sua volta, a natureza. Passaram a apreciar os televisores, a admirar os computadores, a idolatrar os telemóveis substituindo os seus tempos livres ao ar livre por momentos de ócio e de desleixo. 

Cresceram edifícios que acolhiam crianças vindas de diferentes partes das cidades. A esses edifícios chamaram-lhes escolas. Iguais, cinzentas, tornavam-se verdadeiras obras de reprodução em massa. Sem qualquer poder de escolha, sem qualquer oportunidade de serem escutados, quem as frequentava limitava-se a entrar, a sentar a ouvir, a reproduzir e a mastigar os conteúdos que alguém mastigou; limitavam-se a obedecer, centrados nos quadros, nos livros e nos exemplos que lhes chegavam, Não questionavam, não saíam da linha que já se encontrava traçada, mesmo antes de terem nascido, porque sempre foi assim, porque nunca se poderia sair da linha. Assim diziam, era Lei!

Lá fora, a vida acontecia de um modo cinzento, e assim, tornavam-se meros repetidores e reprodutores de uma cultura, de uma educação, de uma sociedade em crescimento, uma sociedade em miniatura.

As janelas, sempre abertas, permitam que bem lá ao fundo se vissem as montanhas ainda intactas, verdejantes, convidando cada um à sua exploração, ousadia e criatividade. Mas eram espaços impossíveis de alcançar. Estava definido que não poderiam ser tocados.

Um dos servos num momento de observação fugaz e sem que ninguém o controlasse, questionou-se, apenas, porque era tudo tão belo, lá ao fundo, e porque razão não era possível de o cheirar, saborear e de o sentir. Perguntas que não conseguia ter resposta, porque essas respostas nunca lhe foram dadas, porque nunca teve a oportunidade de ser escutado, nem de passar o que sentia. Nunca teve a oportunidade de procurar as suas respostas. 

Num momento ousado, e sem ter em conta a forma como poderia ser julgado, correu a toda a pressa até atingir essas montanhas verdes. Ao entrar nessa cidade verde cheia de árvores, de alguns pequenos animais, que observava com cuidado, sentiu a terra e tudo o que ela continha. Sentiu a água e tudo o que ela lhe proporcionava. Brincou com paus e tornou-se um aventureiro daquele tesouro escondido até então. 

Os seus movimentos tornavam-se cada vez mais fluídos, livres de opressões, de observações pejorativas. A sua consciência em relação ao que o rodeava despertou nele sentimentos e sensações que até então estava proibido de sentir. Aprendeu a reconhecer os animais, as plantas e nas suas idas secretas até ao lugar mágico, aprendia cada vez mais, em relação ao que o rodeava e até em relação a si próprio. Ele próprio afirmava que quando brincava sentia-se livre, tanto quanto a sua curiosidade quisesse e permitisse. 

Ansioso por partilhar estas descobertas, convidou um a um os seus companheiros de enclausuramento, levando-os a jurar que aquele tesouro não poderia ser revelado. Sempre que recorriam àquele sítio as suas mentes viajavam por sonhos nunca imaginados, por cenários nunca construídos, por vivências nunca experimentadas. Estavam a ser crianças, porque por momentos se ousaram a tentar. 

A palavra foi-se espalhando e todos começaram a aprender a viver na Natureza, a respirá-la, a respeitá-la, a torná-la uma companhia de brincadeira. As escolas com todo o entusiasmo dos que as frequentavam, procuravam explicar o porquê de toda esta motivação, o porquê de tudo o que a Natureza lhes proporcionava. Amedrontados e estimulados pela escuta dos mais pequenos, desafiaram-se aos poucos a sair, a correr como eles corriam, a explorar como eles exploravam, a acompanhar como eles se acompanhavam, tornaram-se irmãos e companheiros nas aventuras em espaços abertos e livres, valorizados, agora, pela liberdade, pela capacidade de enfrentar o imprevisto, pela possibilidade de criação, pela exploração do corpo, da natureza e dos momentos fabulosos que esta lhes proporcionava, 

As escolas mudaram e tornaram-se laboratórios do brincar, do explorar, da resiliência, da vivência do ar livre, do sentir o natural. As escolas tornaram-se cenários vivos, sem paredes, com os princípios claros e definidos no brincar, tornando-o a maior ferramenta das aprendizagens. A Natureza tornou-se a melhor sala de sempre, onde a terra, as pedras, os paus, as árvores, se tornaram experiências vivas e reflexo de aventuras, de experiências, de diálogos, de relações que se assumem fundamentais na construção do conhecimento. As escolas escutaram e olharam para cada criança de um modo único e respeitado.

O ar que respiravam tornou-os mais saudáveis, mais resistentes e  capazes de se aventurarem por subidas incríveis às árvores, por corridas loucas, onde o destino era um (que ninguém sabia qual era). As quedas não eram apenas quedas, eram aprendizagens, eram momentos que os ensinavam a cair, mas mais do que a cair, ensinavam a saber levantar, com a ânsia de continuar com marcas, não de insucesso mas de experiências que lhes permitiam crescer saudáveis, ousados e com vontade de ser.

Tudo lhes foi dado, tudo foi aproveitado. 
Experimentaram e viram que era bom.

Cada um agradeceu, agradece e continua a espalhar a palavra, a semente. 
A semente caiu em boa terra e continua a dar muitos frutos, 

Esta é a lição, lembremo-nos, ainda de que, mesmo valorizando estes espaços, não servem para os adultos descansarem ou para as crianças libertarem as energias. São espaço que devem ter intencionalidade de ação, devem ser promotores de aprendizagens e acompanhados de forma cuidadosa pelos adultos!

A palavra espalha-se e mais do que repetir ações, valorizam-se potencialidades. 
Estas são as palavras da Natureza, que permitem encantar e valorizar as experiências e histórias de vida, que fortalecem e valorizam o crescimento das crianças. que assentam a essência do ser educador no brincar, no escutar e no caminhar, com a consciência de que não sabemos tudo e que continuamos em constante crescimento, connosco próprios e com quem caminha a nosso lado, as crianças. 

 

Palavra da Natureza. 

Ámen. 


#umacaixacheiadenada


Rui Inácio






Comentários

  1. Amen!

    Parabéns Rui pelas tuas palavras, pelas tuas partilhas, pelas tuas inspirações ❤️

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    1. Obrigado Diana! :) São palavras que levam a refletir, que me fazem refletir e torná-las visíveis! :)

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  2. Gratos pela palavra da ?Senhora?. Rui Inácio, profeta da Natureza... Embaixador do Brincar (de rua)?!? Vou partilhar com os Guardiões do Brincar!

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    1. Obrigado pelas palavras! :) Que se partilhe, se assim fizer sentido! :)

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  3. Inspirado e inspirador, Rui Inácio! Mais um texto fantástico que vou incorporar nos meus / teus textos de eleição :-)

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    1. Muito obrigado! É mais um que reflete a reflexão que vou fazendo e que tenho gosto em partilhar! :) Fazes parte desta caixa! :)

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  4. E como bom pregador o importante é desseminar a palavra, para que essa alegria e motivação seja sentida por todas as crianças deste país! Bem haja Rui pela ousadia de sair fora da caixa e expressar em palavras aquilo que muitos têm recordado no coração! Uma infância feliz!

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    1. Muito Obrigado Isabel! apenas tento refletir e fazer com que se pense, de alguma forma, no que vou pensando e sentindo! :)

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  5. E como bom pregador o importante é desseminar a palavra, para que essa alegria e motivação seja sentida por todas as crianças deste país! Bem haja Rui pela ousadia de sair fora da caixa e expressar em palavras aquilo que muitos têm recordado no coração! Uma infância feliz!

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  6. Parabéns! Fantástica reflexão que nos faz refletir também e não mudaria bem uma vírgula!

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