Na escola (quase) todo o espaço natural está vedado

As escolas voltaram a ter vida, sorrisos e risos. As equipas regressaram cheias de esperança de que tudo passará e que as crianças que receberão, tornarão os seus dias mais felizes e, os adultos, permitirão que as crianças tornem cada dia especial, um dia de oportunidades. 

Aconselhados pela DGS a rua vai tomando o seu lugar de destaque, vão se definindo momentos nos espaços exteriores, momentos que andaram esquecidos pelos tempos. 

A rua, mais do que nunca, tornou-se um espaço a valorizar, a explorar e a tornar intencional nas planificações diárias dos adultos. 

De facto, com estas mudanças, até que ponto mudamos a nossa forma de olhar para a educação de infância, para os espaços exteriores e, principalmente, para as crianças? 

A realidade é que as preocupações escolarizadas se mantiveram: o uso e abuso de fichas tornou-se uma forma de ocupar, mais do que uma forma de se fazer educação, levando a que, por vezes repetidas, se tornassem como verdadeiras competições entre pais, na exigência de atingir o perfeito e o bonito, impulsionado por quem os enviava. Com que intuito foram surgindo? Seguimos o “toda a gente faz assim”, e tornamos este momento, numa mera ocupação de tempos livres escolares? O tapete foi retirado e a nossa forma de estar, pouco coerente nas prioridades, tornou-se num menu pronto a servir a um e a todos, independentemente das suas especificidades, individualidades. 

Os grupos de Messenger e de WhatsApp aumentaram drasticamente e tornaram-se a forma de comunicação, para uns eficazes, para outros verdadeiros corredores de exposição de trabalhos realizados, e/ou exigidos, quer por educadores, quer por pais. As fotografias não paravam, os comentários iam surgindo e os sentimentos eram diversificados. Uns confiantes, mostravam o que os filhos já atingiam, outros mais calados, ignoravam porque sabiam que, nesse tempo, valorizaram o que mais importante consideraram para os seus filhos, permitir o tempo em família e o brincar. Mas com que intuito criamos estas dicotomias? Ocupar o tempo? Fazer com que os pais se tornassem educadores? Tornar a competição um fator a desenvolver entre famílias? 

De facto, a prioridade perde-se, o centro da aprendizagem vira-se do avesso e as crianças passam de primeiro, para o segundo ou terceiro plano. As atividades práticas e de origem exploratória, com vista à defesa dos interesses das crianças perdeu-se nos corredores virtuais, na ânsia de se receber a taça da perfeição, mesmo que realizada pelos pais. 

De facto, a mudança ocorreu, para melhor, ou pior e, cada um deverá fazer essa reflexão! O interesse que estabelecemos nas práticas e a direção, ao longo deste tempo, valorizaram, apenas, os dossiers cheios, pois agora no regresso, já há trabalhos para arrumar, e assim, é quase como se não estivéssemos confinados 2 meses entre quatro paredes e não valorizamos, nem soubemos dizer o que era a nossa profissão, qual foi o nosso papel e qual é o nosso papel, mesmo que à distância. 

Mas regressemos aos dias de hoje. As ânsias vão-se desvanecendo à medida que os dias passam, vamos refletindo na profissão que temos em mão. Agora dizem-nos que na rua haverá menos hipótese de contágio, por isso, o espaço exterior é um espaço a aproveitar. 

Vão-se partilhando, vezes sem conta, atividades fabulosas que se foram desenrolando ao longo destas semanas, foram-se mostrando formas de reinventar a educação, preocupações e prioridades. Dizemos que a criança é, de facto, a principal razão para estarmos a fazer o que estamos a fazer, que tem um papel ativo na sua aprendizagem, que tem voz e que a escutamos ativamente, mas mesmo antes do confinamento, ignoramos esta sua necessidade: brincar na rua, ter contacto com o espaço exterior. 

Quantos jogos têm surgido na rua e quantas crianças têm alargado realidades extra sala, porque de facto, agora, a rua tornou-se um espaço valorizado pelos educadores, pelos adultos, ou pelo menos, assim se diz. 

O facto de utilizarmos este espaço não pressupõe um menor descuido na planificação, na intencionalidade pedagógica e na segurança. Não o utilizamos só porque sim, porque sim não é resposta. Torna-se uma excelente ferramenta de utilização livre e orientada, torna-se o reflexo do brincar exploratório do meio onde estão, de sentir e de explorar com todo o corpo. Valoriza-se o brincar, o sujar, o arriscar, o risco, e tudo o que a ele relacionamos. É o brincar e as crianças fazem-nos melhor do que ninguém. 

Sabemos a realidade das escolas, os espaços exteriores não foram, de todo, priorizados aquando a sua construção. Mas o que fizemos para contrariar? Mas o que fazemos para os aproveitar, ainda que por muito pequenos que sejam? Que condições criamos dar voz ao espaço exterior? 

Cada espaço, é um espaço, cada esquina uma verdadeira aventura e potencialidade. Cada árvore um elemento fabuloso para trepar e para saltar, um verdadeiro desafio para as crianças, mas ainda maior para os adultos, porque as suas inseguranças florescem de tal modo incrível, que espelhamos na rua os nossos medos. 

Mas não vamos esquecer os sentimentos que a rua lhes potencia, a motivação que lhes cria, o empenho que os torna tão motivados e focados nos objetivos que definiram mentalmente sozinhos, ou em grupos. Estão a brincar na rua e isso, é algo que ninguém lhes pode tirar. 

Escondam e retirem todos os sinais de proibidos que limitam as brincadeiras na relva, nas árvores, nos parques. Porque não são esses os sinais que os impedem de crescer, somos nós, adultos. 

Se há uma árvore, é preferível retirar a árvore e não permitir que a subam, porque assim, não se magoarão. 

Se está frio, é preferível estar na sala do que permitir que adoeçam, mas é no ambiente saturado, de ar, de sobreproteção que as doenças se vão propagando. E para ultrapassar estes medos, que se mudem as roupas, nas as crianças. 

Se estamos no inverno, perdemos todas as oportunidades que ela nos traz, porque o vemos, apenas, e somente da janela. E mesmo assim, vemos apenas o que as janelas, excessivamente, decoradas permitem. Porque a nossa forma de olhar para a organização da sala, dá prioridade aos embelezamentos das janelas, e esses não são mais do que barreiras para a observação do exterior. 

Se reconhecemos que, neste momento, o espaço exterior é algo benéfico para as crianças, porque nos esquecemos tão depressa? Será que o espaço exterior apenas nos ensina, nos deixa explorar e criar oportunidades quando o tempo está, no meu entender satisfatório para o fazer? 

Acabamos por transmitir tantas ideias às crianças que se tornam erradas e pouco coerentes ao longo do tempo. Se brincam com a terra, é porque fazem pó e se sujam. Se brincam com paus, é porque se podem magoar, ou magoar quem está próximo de cada um. Se vivemos a cultura do medo é nessa cultura e nesse caminho que vão caminhando e construindo os alicerces que dizem, que se aprendem no jardim-de-infância, porque tudo o que sei, aprendi no jardim-de-infância. 

Mas agora não, felizmente, todos estamos na rua, todos deixamos de olhar para as pastas que vão vazias este ano, todos ignoramos as fichas e os trabalhos por festividades, todos ficamos interessados e reconhecemos o verdadeiro significado das palavras: interesse das crianças, escuta ativa, voz das crianças. 

Foram retirados os sinais de proibição: de correr, de falar alto, de trepar, de brincar, de … de todos aqueles que foram colocados, antes de reconhecermos a verdadeira potencialidade do espaço exterior. 

De facto, que relação acabamos por criar com o espaço exterior, com a rua, com a natureza? Somos os primeiros a registar, fotograficamente, a beleza dos espaços naturais, porque achamos que estamos maravilhados com cada recanto, mas esquecemos essa maravilha e não a transmitimos. Deixamos de nos maravilhar com o que temos à nossa volta, com a simplicidade, com a potencialidade de cada pau, cada folha, cada árvore e deixamos de transmitir o quão é maravilhoso brincar na rua, na natureza, às crianças. Se queremos que eles se maravilhem e se tornem maravilhados, o primeiro passo a dar é nosso. Quantos motivos temos lá fora para sair da sala e, mesmo assim, teimamos em torná-los desculpas para nos mantermos nos casulos. 

Na escola (quase) todo o espaço natural está vedado, mas hoje deixará de estar, porque se o espaço exterior é uma fonte de aprendizagens, de oportunidades, de explorações, então, a partir de hoje, poderão beber dessa fonte! 


#umacaixacheiadenada 


Rui Inácio 

Comentários

  1. Obrigada por ajudar a que não me sinta em "solidão pedagógica"!

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    1. somos muitos a pensar assim! :) Mantenha-se fiel aos seus ideais. :)

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