No dia em que a terra (e a escola) recomeçou…

No dia em que a terra parou, os barcos deixaram de navegar, os carros deixaram de andar, os aviões deixaram de voar.

Neste dia, os animais ganharam o seu espaço, a natureza foi encontrando o equilíbrio que necessitava e nós, tornamo-nos prisioneiros nas jaulas que, nós mesmos, contruímos. 

No dia em que a terra parou, tiraram-nos os abraços, o toque e o sentir. Isolaram-nos separadamente de todos aqueles de quem gostamos, obrigaram-nos a estar afastados, no entanto, reinventamo-nos neste novo viver. 

No dia em que a terra parou, reclamamos que os risos das crianças deixaram de se ouvir, que a rua deixou de ter o movimento que estávamos habituados a ver, que os parques infantis ficaram vazios e sem crianças a brincar, a imaginar e a criar. Queixámo-nos dessa liberdade que nunca reconhecemos e, mesmo sem valorizar o espaço exterior que as crianças insistiam em utilizar, reclamamos pela sua devolução. No entanto, antes de todo o confinamento, nem sequer o aproveitamos como o deveríamos. Com que legitimidade o reclamamos se nunca lhe atribuímos valor, sentido ou significado para o desenrolar das brincadeiras que lhes proporcionou? 

No dia em que a terra parou, as escolas fecharam. As crianças ficaram em casa, com os pais, com as famílias, e neste novo modo de ensino à distância, foram sendo invadidos por trabalhos sem fim, pouco coerentes e afastados das suas reais necessidades. Foram assistindo ao programa “estudo em casa” e, esforçadamente, tentaram acompanhar o que ia sendo apresentado. 

No dia em que a terra parou, a escola do ontem, que vive o hoje, mas que prepara os alunos para uma educação fora de prazo, criou um fosso entre a escola e os alunos. Quantos foram ficando pelo caminho? Quantos não tinham acesso ao mínimo recomendado? Quantos se sentiram frustrados por não chegar onde gostariam? 

No dia em que a terra parou, a escola mudou e, forçosamente, os professores tornaram presente as chamadas “novas” tecnologias na sua prática, e fizeram-no de um modo rápido, num clima de entreajuda, de cooperação, de ir além dos seus limites… tudo isto à distância! 

No dia em que a terra parou, as escolas deixaram de ter horários, os professores trabalharam dia e noite, de modo a que todos os alunos estivessem o mais perto possível,… pelo menos tentaram. 

No dia em que a terra parou, as creches ficaram vazias, os jardins-de-infância perderam a alegria, a expressão, e tornaram-se meros edifícios com uma panóplia de atividades expostas para o ar que passava pelos corredores. E tanto trabalho, tantas fichas e receitas prontas a consumir, para quê? Para ficarem expostas, sem valor algum, porque de facto, não havia ninguém para as admirar, não havia ninguém para lhes atribuir significado, … tornaram-se em nada… como sempre foram: reprodução perfeitas do que o adulto idealizou. 

No dia em que a terra parou, nas creches, nos jardins-de-infância, nas escolas, os recreios ficaram vazios, sem movimentos, sem agitação, sem jogos, sem brincar, sem crianças. Aparentemente, nada mudou, pois antes desse confinamento, poucos eram os que davam um valor real ao espaço exterior, ao parque. Já nessa época estava vazia, simplesmente demos continuidade ao vazio no tempo de confinamento. 

No dia em que a terra parou, começaram-se a ouvir rumores de que, após o confinamento, as creches iriam abrir… Os receios começaram a surgi, as questões nunca mais paravam e as decisões eram postas em causa pelo bem-estar das crianças. Mas não só por elas, acabamos por desviar os nossos receios, direcionando-os para as crianças. Nesse dia em que abriram, fizemos o que sempre nos comprometemos, valorizar cada criança, valorizar o afeto, permitir que sejam felizes e, como referido noutro texto, os olhos falaram mais do que nunca, tornaram-se a expressão da nossa alma. 

No dia, antes, em que a terra recomeçou, a dificuldade em dormir era muita, os pensamentos voavam por meios de ações a ter, de procedimentos a seguir e, sem que nos apercebêssemos, a noite foi passando, enquanto a mesma embalava aqueles que iriam ser recebidos de braços abertos. Acordados e com pouca vontade de dormir, os educadores e auxiliares, adivinhavam um dia penoso, em que a reação de cada um seria uma incógnita, em que o emaranhado de pensamentos e preocupações, não permitia fossemos embalados pelo sono. 

No dia em que a terra recomeçou, os corações de cada um, palpitavam com os receios a tomar-lhes o batimento, no entanto, voltaram os abraços, receosos, os sorrisos, escondidos, e espelhamos os medos de um modo ténue na reação de cada criança. 

Não nos peçam para não abraçar, não nos impeçam de lhes transmitir o afeto, porque a educação faz-se de relações, de afeto e de toque. E se a cada choro os ignorássemos, seria como se cravassem em nós um punhal, que nos levaria a afastar destes sentimentos que se criam, que nos matariam a alma pelo impedimento de sermos o que mais gostamos de ser, Educadores, auxiliares. Mas somos mais do que as ordens e do que as diretrizes, somos seres humanos, conscientes, com sentimentos e que reconhecem que na creche, isto não pode ser evitado e muito menos proibido. 

No dia em que a terra recomeçou, o sentimento invadiu cada um e como um marginal, fez com que o sentimento de ilegalidade e de seguir contra o que fora aconselhado se tornasse presente… esse aperto, esse impedimento que, inevitavelmente, acabou por ruir ao ter os mais pequenos nos braços. 

No dia em que a terra recomeçou, a palavra saudade tornou-se uma vivência, tornou-se o sentimento vivido por todos os que já regressaram e ainda se mantém acesa essa chama de saudade aos que estão prestes a regressar. 

No dia em que a terra recomeçou, as mãos foram desinfetadas vezes sem conta, os brinquedos colocados e retirados, sempre que deixavam de ser utilizados nas fabulosas aventuras e descobrimentos das crianças. 

No dia em que a terra recomeçou, mantivemo-nos juntos e empenhados em contribuir para uma educação de excelência, embora cansados, atenuamos cada lágrima que escorria nas faces pequenas, criamos sorrisos para que se esquecessem de que tudo mudou e abraçamos sempre que nos pediram, porque precisavam. 

No dia em que a terra recomeçou, fomos diretos para casa, cansados, e a pensar no que há a melhorar, no que há a mudar, na forma como se receberão as crianças no dia seguinte. Seguem em pensamentos conscientes de que tudo o que foi feito, foi pensado nas crianças que estavam à nossa frente e que tornaram esse dia uma verdadeira aventura pelo desconhecido. 

No dia em que a terra recomeçou, a rua tornou-se, finalmente, um espaço reconhecido por mais um canto a explorar, a ter em conta, que possibilita o brincar, a verdadeira exploração das crianças. 

No dia em que a terra recomeçou, já ninguém se importou com os joelhos esfolados, com as roupas sujas, com as mãos encardidas de terra e do tempo que passaram no exterior, porque nesse dia, permitiram que as crianças estivessem mais envolvidas do que nunca, nas atividades, nas relações, nas vivências, nas imaginações, nos sonhos, mais acima de tudo, no bem-estar. 

No dia em que a terra recomeçou, permitimos que as crianças se envolvessem de uma forma serena no brincar e permitimos que o fizessem na rua, porque dizem que é o melhor sítio para se estar. Mas de facto, é mesmo! Este é o melhor remédio, é o melhor cenário para que se aventurem e vivam a experiência de ser livre na rua. 

No dia em que a terra recomeçou, a nossa forma de viver a educação tornou-se diferente. Foi-nos retirado o tapete da segurança, o tapete que nos mostrava a velha máxima, Sempre fiz assim… Agora… aproxima-se um novo dia… um novo recomeço, uma mudança. 

Num próximo dia em que a terra recomeçará, o pré-escolar iniciará com todos os receios preenchidos e cheios de vida. Valorizarão, um dia, as tentativas, os riscos com que brincam, as relações, as emoções, a motivação e o empenho para serem livres. 

No dia em que a terra recomeçar, esqueçam, por favor, as pastas e as cartolas, as fichas e os grafismos, os trabalhos em atraso, as lembranças de linha industrial, ou o vazio que as capas e os dossiers possuem devido a esta ausência. 

No dia em que a terra recomeçar, lembrem-se que o momento não é para isso, é para nos reinventarmos, para mudarmos e para nos adequarmos a estas novas formas de estar. 

No dia em que a terra recomeçar, sejam conscientes, lembrem-se, a maior necessidade, neste momento, é estarmos e sermos presentes, é sermos companheiros e verdadeiros profissionais de educação que sabem acolher, que sabem abraçar, que sabem transmitir todo o conforto necessário para este momento. É sermos educadores de valores, de sentimentos, de afeto. É sermos sensíveis. 

No dia em que a terra recomeçar, mantenham-se unidos, partilhem e sejam audazes. Vivam e comuniquem com quem estão, se estiverem juntos, será mais fácil ultrapassar cada momento difícil. Partilhem as dificuldades, procurem por soluções, tornem real a palavra união, cooperação e sentido do outro. 

No dia em que a terra recomeçar, lembrem-se que nós somos essenciais neste processo e, como tal, sejamos conscientes nas nossas práticas, vejam com o coração, comuniquem com o olhos e tornem-no na melhor forma de chegar aos pequenos que entram receosos, espelho dos anseios das famílias e de nós próprios. 

Nesse dia, transmitam-lhes a confiança que temos dificuldade em ter, transmitam-lhes o afeto que nem sempre conseguimos ter, transmitam-lhes a tranquilidade que tão dificilmente conseguimos ter, transmitam-lhes o vosso ser, porque se assim o fizermos, não seremos apenas nós, mas seremos todos nós. 

No dia em que a terra recomeçou, levaram convosco o sentimento de missão cumprida. 
No dia em que a terra recomeçar, lembrem-se, farão o melhor que sabem, dar-se-ão a 100% e tornarão as palavras missão cumprida uma realidade.

No dia em que a terra começar, tornem o impossível possível.

#umacaixacheiadenada 


Rui Inácio

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