Caramba, isto não é Educação de Infância!

Mudança. adaptação, renovação, reflexão, novas práticas. 

Os tempos levam-nos a mudar, levam-nos a adaptar as nossas práticas a novas necessidades. No fundo, tornamo-nos educadores à distância, se é que assim o poderemos dizer. E, reconhecendo esta mudança, quanto esforço temos feito para que se torne possível chegar a todos. 

De olhos vidrados nos ecrãs, mudamos os cenários que estavamos habituados a ter, tornando-os sem afeto, sem proximidade, sem toque, sem abraço, sem beijos e, por muito estranho que isto nos soe, mantemos o foco, ser educadores de infância. 

O nosso foco de trabalho continua a ser cada criança, continuamos a querer o bem-estar de todos, planeamos, de igual forma, as atividades para que lhes cheguem propostas, oportunidades pedagógicas, pensadas e de crescimento para cada um e não para um grupo. No entanto, e à distância, depressa esquecemos as nossas máximas: o superior interesse da criança, a escuta ativa, respeito pelos interesses da família, respeito pelo espaço da família, pelo espaço dos alunos e, até, pelo nosso espaço

É incrível verificar que, à distância, nos esquecemos do que realmente importa, e sem chão seguro, sem caminho definido, envolvemo-nos em atividades que pretendem ocupar o tempo, tudo com o objetivo extremamente delineado, as letras, os números, os grafismos.... 

Lá se vai o superior interesse da criança, lá se vai a escuta ativa da criança, lá se vai o brincar, lá se vai o tempo em família, lá se vai a rotina familiar. 

De um momento para o outro, entramos nas casa de cada criança e entramos sem pedir. Na ânsia de não os abandonar à sua sorte, decidimos fazer algo para bem deles, ora por nossa iniciativa, ora por obrigações das direções de agrupamentos, ora presidentes de instituições de entidades privadas... achamos que estamos a contribuir para um melhor ambiente familiar, achamos que estamos a dar resposta aos interesses das crianças, achamos que vamos manter os nossos planos presenciais, ainda que à distância, achamos que continuamos a pôr em prática a educação de infância, achamos que continuamos a respeitar a família e o real significado da palavra criança. Achamos que, ao planearmos as atividades, podemos exigir que os pais os acompanhem a todo o tempo, de modo a que tudo seja concretizado. 

Achamos mesmo! Mas caramba, isto não é Educação de Infância. 

Entramos ora por email, ora por video chamadas, ora, em alguns casos, até por correio e, priorizámos, única e exclusivamente aquilo a que mais fácil tivemos e temos acesso, o que os pais mais facilmente conseguem adquirir, ou até, o que mais facilmente conseguem imprimir, fichas. Em pouco tempo lá se vai o stock de tinteiros lá de casa, lá se vai o stock de folhas, lá se vai o stock de material enviado, ou em alguns casos, o stock de livros de fichas encomendados nas editoras. Ainda bem para as editoras...Tornamo-nos tão pouco coerentes com as palavras que verbalizamos, respeito o interesse das crianças, escuto, de forma ativa, cada uma delas, penso e planeio as atividades única e exclusivamente para o grupo que tenho. Assim é? 

Choca-me, verificar, no meio de tantas tentativas, que o recurso mais simples seja aquele a que todos acedem, ou a maioria, livro de fichas de Matemática, de Língua Portuguesa e ainda de Estudo do Meio, como se essa fosse a maior preocupação neste momento, como se essa fosse a melhor forma de aplicar a educação de infância à distância, como se essa fosse a meta do Pré-escolar, como se o Pré-escolar fosse um momento de escolarização! No entanto, e infelizmente, é, para algumas cabeças brilhantes. Este é o percurso que consideram mais viável na preparação para a GRANDE mudança, para o 1º ciclo. 

Não é. E, isto não é Educação de Infância. 

Criaram-se grupos de partilha no facebook com encarregados de educação e educadores, criaram-se grupos de Whatsapp com encarregados de educação, de modo a que a comunicação se tornasse mais estreita, assim, as atividades são lançadas através destes meios de uma forma mais rápida, desafiando cada família a participar e a partilhar nos diferentes grupos, mas pensemos, o que ganha cada criança com isso? O que ganha cada família? De um momento para o outro surgem resultados, brilhantemente, preparados pela família, resultados esses que, poderiam revelar o trabalho de cada criança e não dos pais que, de forma empenhada, tentaram melhorar cada produção, isto porque a partilha nos grupos, leva a que o perfeito seja a palavra de ordem, a comparação de trabalhos seja um termo constante. Leva, ainda, a que as crianças sintam que não estão à altura dos trabalhos dos colegas, leva a que sintam a desmotivação e à falta de interesse para concretizar o que quer que seja, porque serão expostos nesse grupo. Elevamos, desta forma, o fosso entre a realidade, a aprendizagem e as construções ou resultados que não representam, de todo, o trabalho das crianças. Mas, de que adianta serem criados estes grupos se não os sabemos gerir de um modo ético e pedagógico? 

Isto não é Educação de Infância. 

Enviamos planificações semanais com tarefas a serem cumpridas e, de preferência, com registos de evidências, com fotografias dos grafismos, com trabalhos digitalizados sujeitos a correções, e para quê? São planificações que deveriam ter a Negrito a palavra propostas, não requerem obrigação. No meio de todo este envio de trabalhos, de obrigações, o que fazemos nós? Com que propósito poderemos dizer que somos educadores se nem estamos a valorizar o principal interesse das crianças? Esse interesse é o brincar e quantas competências se conseguem atingir através dele!

Pensemos, ainda, nas listas de atividades a metro que se enviam, na exigência exagerada das atividades, nos prazos a cumprir, na quantidade de fichas que tornam o grafismo, as letras e os números o foco principal da educação de infância. Pensemos nos coelhinhos que mandamos construir, nos animais que foram solicitados de serem modelados pelas crianças em plasticina ou construídos com rolos de papel higiénico, pensemos no propósito das atividades: para preencher o tempo, ou para, realmente, lhes dar momentos em que desenvolvem competências importantes? 

Caramba, enviar trabalhos só porque sim, não é Educação de Infância.

O brincar é importante, promover momentos de brincadeira em família, dotar as famílias para a simplicidade, para a construção de conhecimento dos mais pequenos, levando a que sejam sensibilizados nas potencialidades que existem e que lhes permitem dar asas à imaginação, a serem criativos, a valorizarem as tentativas e não os resultados, a perceberem que o perfeito, construído em família, ou pelos encarregados de educação, não é o reflexo do trabalho, ou das aprendizagens das crianças, mesmo que a criança tenha acompanhado o processo e tenha participado apenas na assinatura do seu nome. Qual é o enquadramento, qual é o propósito, qual é o nosso papel? 

Lembremo-nos que todos estamos em adaptação, que muitos são os pais que se encontram em teletrabalho, que continuam atarefados nos seus afazeres, empenhados para que nada falte, não adianta sobrecarregarmos as famílias e enviar-lhes listas obrigatórias de trabalhos com ameaças em rodapé. Presencialmente, valorizamos o contacto com a família, respeitamos os seus interesses, as suas necessidades, as suas fragilidades, à distância apenas queremos as evidências daquilo que idealizamos, sem sequer lhes termos pedido autorização. 

É uma verdade, reinventamo-nos enquanto educadores, mudamos as nossas práticas, mas isso não significa termos de realizar tudo em rebanho, de modo a que as prioridades se centrem numa folha de papel com tracejados, se centrem no colorir desenhos, se centrem no delinear números e letras, no treinar a letra manuscrita, se centrem na preocupação, absurda, de que não fiquem para trás no 1º ciclo! 

Caramba, isso não é ser Educador de Infância. 

Reinventamo-nos e, felizmente, têm surgido práticas fabulosas que continuam a revelar o que é ser educador... desafiam os mais pequenos a tornar o brincar uma constante, a brincar com materiais que nos esquecemos da sua potencialidade. Tem-nos levado a reconhecer a importância do afeto, das relações, da amizade, da linguagem, e que tudo isso se torna como um meio fabuloso para construir excelentes atividades, criadas por eles, imaginadas por eles e levadas a cabo por eles. Tem surgido PROPOSTAS que se tornam verdadeiros tesouros, verdadeiros exemplos do que é ser educador à distância. E não precisamos de gastar recursos mirabolantes, basta saber ponderar o que cada material nos pode oferecer, o que cada material pode proporcionar; basta permitir que as crianças sejam crianças, seres em aprendizagem constante, seres em que o brincar é a sua melhor expressão. 

Por favor, em confinamento, não exagerem, não sejam mais do que aquilo que nos pedem, sejam racionais, sejam bons exemplos, sejam bons educadores, sejam profissionais. Não invadam a casa daqueles que conhecemos. Não definam rotinas que não nossas, não alterem e não exijam mudança de rotinas familiares. Com que direito o fazemos? 

Caramba, isto não é Educação de Infância!

Não será todo esse trabalho excessivo que os vai fazer lembrar dos educadores que somos, mas. sim, recordar-se-ão dos educadores que fomos enquanto elementos que respeitaram o ambiente familiar, enquanto elementos que criamos relações fortes e de cumplicidade. Lembrar-se-ão de que, mesmo à distância, os desafiamos, não os obrigamos. A nossa marca, enquanto educadores, ficará registada pela ousadia, não pela check list infinita de carga horária e de trabalho. 

Deem-lhes espaço para ser crianças, deem-lhes espaço para ser família. 

Ser educador é reconhecer o nosso lugar, é permitir criar oportunidades, mas é mais do que isso, é respeitar os nossos alunos, as famílias e a infância. Os pais não são Educadores de Infâncias, esse é o nosso papel, portanto, não o poderemos exigir às famílias! Não podemos exigir trabalhos de expressão plástica de um modo constante. Apostem nas competências sociais, ainda que à distância, na motivação, na destreza, na motricidade, no despertar a curiosidade, e isso não tem de ser evidente em fichas. A preparação para o 1 ciclo vai muito além disso: a relação, a capacidade de se expressar verbalmente, o raciocínio lógico matemático, resolver o erro e saber ultrapassa-lo, tudo possível de viver através do brincar, do brincar em casa!

Não nos podemos restringir ao que é visível, ao que é possível de avaliar à distância, nas fichas e nas construções relativas à expressão plástica!

E parem de se justificar com o sempre fiz, com o passado, porque mais do que apresentarmos o passado como justificação, temos de apresentar o presente como ação! 

Repito, os pais não são Educadores de Infâncias, esse é o nosso papel, portanto, não o poderemos exigir às famílias!

Toda a gente o sabe, mas toda a gente o esquece. 


#umacaixacheiadenada

Rui Inácio
  

Comentários

  1. Gosto muito de ler os seus artigos,identifico-me tanto mas tanto com o que escreve..."soubera eu escrever assim"
    Muito obrigada pelos artigos que leio sempre.

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    1. Muito obrigado por acompanhar e por fazer parte desta caixa! Agradeço, de forma sincera, as suas palavras!

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  2. Concordo em pleno e, contra mim falo, pois também resvalei um pouco para esta loucura... Agradeço esta excelente reflexão que já partilhei.

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    1. São reflexões, provocações, e neste momento, é algo em que temos de pensar! obrigado pelo seu comentário!

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  3. Concordo plenamente com a sua opinião.

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  4. Talvez esta forma de fazer ande por aí, acredito. Mas também há outras!

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    1. É verdade, é o cenário de muitos lares. Mas, felizmente, como refiro no texto, também existem boas práticas!

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  5. Caro Rui,

    Aplaudo, aplaudo, aplaudo!

    Isto não é educação de infância,
    Isto não é ensino!

    Mas isto, é o que fazemos... 🥺

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