Sinto-me aprisionada na minha profissão!

Todos os dias vou trabalhar. Sei o que tenho de fazer.

As orientações que me são dadas são precisas, "Deves mostrar trabalho! Os pais pagam para termos um bom serviço, um serviço de qualidade."

Não me permitem argumentar, ou se o fizer nunca sou ouvida, nunca sou escutada como gostaria de fazer para com as crianças que tenho diariamente. A sala está cheia de cor, de tal forma, que por vezes até me faz pensar no exagero que ela própria se torna, na distração incrível e pouco intencional que se  vê refletida nas paredes para aquelas crianças.

Mas continuo aprisionada ao que me obrigam a fazer, ao que me obrigam a ser, ao que obrigam aquelas crianças a sofrer.

Sinto, diariamente, que mesmo quando surgem de sorriso no rosto, me levam a acreditar que as faço felizes, mesmo que não brinque tanto como desejaria, mesmo que não as leve à rua como gostaria, mesmo que não revele os meus princípios e a minha verdadeira essência na educação de infância. Afinal, torno-me num pequeno barco que segue de acordo com a corrente, embalada pelas ordens, pelas expectativas, pela exigência e por uma ideologia completamente errada e afastada dos dias de hoje, das crianças, das prioridades reais.

Ao nos aproximarmos das festividades, as crianças passam para segundo plano e não há pior, do que entender que eu embarco nesta barca, mesmo que não queira! Os resultados devem ser visíveis, a expectativa das prendas perfeitas e iguais para toda a escola, faz com que nos tornemos uma fábrica de produção em massa de pequenas lembranças que, mesmo sendo lembranças dos mais pequenos, quase nem lhes tocaram.

Estou aprisionada e não me deixam libertar.

Gostaria eu de ter a força e a coragem para dizer basta e inverter esta prática.

Mas acordo e sinto forças para argumentar, para contrapor, para valorizar os interesses das crianças, para me sentir escutada e escutar estes pequenos grandes seres. Em vão... À mínima contrariedade, relembram-me que existe muita gente disposta a trabalhar, que dependo do dinheiro ao final do mês, pois é ele que me faz pagar as contas... E por momentos, e de forma reflexiva, mesmo que por imposição, tento, a todo o custo, proporcionar pequenos momentos de puro brincar, de puro interesse.

Mesmo tendo as paredes como testemunhas, sei que não me denunciarão, sei que compactuarão com esta felicidade impressa nos sons, nos sorrisos. Tornar-se-ão mais do que placares de exposição de algo que não importa, mas mais do que isso, guardarão os sorrisos, as graças e as brincadeiras, mesmo que surjam de forma breve.

Como me sinto aprisionada.  

Estou acorrentada à falta de senso, à falta de coerência. Ouço, vezes sem conta, dizer, que a preocupação é o bem estar de todos os que aqui estão dentro, que os devemos ouvir e perceber os seus interesses. Mas, não deixa de ser uma verdadeira mentira.

É verdade que o afeto se mantém prioridade, para mim; que o bem-estar de cada um, também; que a relação entre eles é uma prioridade, mas é uma utopia dizerem que seguem os seus interesses, que fazem para que sejam realmente felizes.

É mentira, e eu faço parte dessa mentira.

Dizem-me que, desde cedo, devem aprender a estar sentados, que se devem empenhar nas fichas que se copiam de sala para sala, e assim, fazem com que tudo se torne escolarizado e afastado dos verdadeiros interesses. Dizem que é o funcionamento da escola, que os pais assim o exigem...

Dizem... E eu, apenas aceno com a cabeça sem poder fazer nada contra.

É mentira, isto não é necessário, isto não é permitir o bem-estar, isto não é ouvir...

É mentira, porque isto não é educação de infância, isto é uma escolarização precoce.

Às vezes dou por mim a sonhar, que consigo impor os meus ideais, aliás, os meus não, os ideais das crianças, o brincar como forma de expressão inata e real.

Mas acordo e o sonho torna-se apenas uma nuvem que se desaparece no meio da realidade... A preocupação pelos papéis é imposta, os adquiridos e não adquiridos e tudo o resto são, dizem, as verdadeiras evidências do que eles fazem na escola, que fazem comigo, mesmo que impostas por alguém que mal conhece as crianças que tenho. Mas, mesmo revoltada, acabo por compactuar pela criança padrão, com objetivos iguais aos demais, com capacidade de pensar e de agir, mas que se torna um mero reprodutor do que é pedido...

Às vezes dou por mim a pensar que quem está acima de mim, embora partilhemos a mesma formação inicial, se tornou uma mera marioneta, em que cada membro é controlado pela direção, pelos pais, pela sociedade, e que o cérebro é tomado inútil na forma de pensar, pois, o que importa não é refletir, mas agora seguir de acordo com o exigido.

Continuo aprisionada... Não tenho forças para mudar, porque sozinha não movo montanhas.

Se os corredores, as salas, os parques se tornassem verdadeiras expressões da educação de infância, não prevaleciam as pinturas, ou qualquer técnica de expressão plástica, porque esse é o caminho mais fácil. E, mesmo tendo tantos trabalhos iguais nas paredes, ainda se exige a perfeição, e em alguns casos, ainda a correção. Sabendo que assim o é, dizem que respeitam a individualidade, os interesses, o erro... tornam-se um verdadeiro Pinóquio, alimentando uma grande mentira refletida nas paredes de tantas escolas.

Será que não conseguem entender? Será que não conseguimos entender que o facto de fazermos tudo igual não é respeitar a individualidade?

Estou aprisionada e não encontro as chaves para me soltar, não encontro quem me possa apoiar. Mas, o meu dia vivo-o de sorriso no rosto, mesmo tendo estas correntes e estes fios que não me deixam ser. Continuo a, tentar, dar tudo o que posso para mudar, para acreditar, para viver e permitir que vivam um pouco da sua infância, mesmo que isso que me custe, me e me doa a alma...

Porque eu continuo aprisionada...


#umacaixacheiadenada


Rui

Comentários

  1. Excelente texto! Gostaria de ter a honra de o poder partilhar. Bem haja

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelas suas palavras! Poderá pesquisar no menu pelo texto e fazer a partilha, ou se desejar, basta fazer cópia deste link: https://uma-caixa-cheiadenada.blogspot.com/2020/02/sinto-me-aprisionada-na-minha-profissao.html

      Muito obrigado,
      Rui

      Eliminar
  2. Magnifico texto, parabéns 💪👌🍀

    ResponderEliminar
  3. Excelente texto, como infelizmente me revejo nele 😔, posso partilhar?

    ResponderEliminar
  4. Parabéns pelo texto!
    Como eu entendo o que é estar aprisionada!!
    Mas a chave estão em cada um de nós ... e todas as correntes...mesmo as mais fortes partem!
    Só temos é que unir as chaves e caminharmos juntos para a mudança!! Até porque não queremos fazer parte dessa mentira!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Assistentes operacionais, mais do que um termo, uma profissão.

Grupos de WhatsApp de pais, um obstáculo ou uma potencialidade?

"as minhas paredes estão cheias de nada (...) isso é sinal de que não trabalho"