Ainda não entenderam a minha profissão!

Quando em pequena ouvi falar da profissão, a imagem que tinha dela não era nenhuma, até que entrei para o pré-escolar.

Se a educação de infância me era desconhecida, a partir desse momento, mostraram-me o que poderia ser uma aprendizagem assente no brincar, na ousadia, no risco, na criatividade, na representação.

O jardim de infância dividia-se em áreas, por diferentes salas, onde podíamos dar largas à imaginação, onde o conceito de brincar era permitido, onde em pares, ou em pequenos grupos, ou até mesmo de forma individual, explorávamos cada canto e construíamos prédios, mercearias e tudo o que a nossa imaginação permitia.

A educadora apoiava as brincadeiras que íamos tendo, observava-nos e permitia que nos desafiássemos.

Certamente terei me sentado à mesa a fazer recortes e possivelmente algumas fichas.

Boas notícias, esses momentos não me ficaram gravados na memória.

A sala, mais pequena, vestia-se de tal forma que, quando entravamos nela, imaginávamo-nos numa feira a vender os melhores produtos que tínhamos nas nossas bancas. Alegres os colegas, trocavam o dinheiro imaginário pelas suas compras, ou por dinheiro inventáramos naquele dia.

A rua... O nosso parque, com alguns baloiços enferrujados, davam-nos a sensação de liberdade quando neles andávamos para a frente e para trás, deixávamos o vento, o sol, ou a chuva bater-nos na cara, sentíamos o frio e o calor… Eramos felizes.

As calças amarelas rasgaram-se no recreio e fizeram me andar, pela aldeia, até casa mostrando orgulhosamente o registo daquele dia: calças rasgadas, foi sinal de brincadeira na rua. O amarelo deixara de o ser, tinham ganho um tom acastanhado com tanta terra que lhes caíra em cima. Os joelhos estavam esfolados e, mesmo doendo, testemunhavam o risco a que me sujeitei, a aventura...

Na rua as pedras eram verdadeiras companheiras e, por vezes, a vontade de as provar lá nos fazia saciar este desejo, que só quem teria aquela idade entenderia. Aos olhos dos adultos não seria mais do que uma tolice, quem se lembraria de provar e alguns até de engolir pequenas pedras? Os paus tornavam-se espadas, tijolos de construções, limites de estradas, ganhavam, simplesmente, um sentido diferente do seu eu real.

A terra que teimava em meter-se dentro dos sapatos incomodava apenas os pais, quando a carregávamos para casa e tornávamos o hall de entrada numa verdadeira praia, onde mostrávamos como tínhamos estado felizes naquele dia a brincar. E toda aquela areia não era mais do que uma testemunha da felicidade!

Com a água, no recreio, tornávamos os canteiros de flores, sem que ninguém se apercebesse, numa panela gigante com uma massa castanha. Continuo a achar que sempre desconfiaram (os adultos) que o fazíamos. Felizmente, permitiram que o fizéssemos e nos tornássemos uns verdadeiros cozinheiros de sonhos e de imaginação.

As representações não paravam, não fosse aquele parque, a rua, o nosso palco preferido, não fosse o espaço testemunha de que realmente éramos felizes e mais do que isso, testemunhava que nos deixavam ser felizes, deixavam-nos brincar na rua.

Será que existe a noção da sorte que tivemos?

Os plásticos velhos, que por ali andavam, resultado do excesso de materiais utilizado pelos jardineiros, e escondidos por nós de forma meticulosa, eram as provocações perfeitas à nossa imaginação, criatividade, exploração, aventura, criação e representação. Nos bicos da vedação ficavam espetados os plásticos, que seriam o pano de fundo para representar as novelas da altura, para representar os melhores cenários que alguém pintou, os cenários pintados com a imaginação! E não há melhor do que isso.

As árvores que nos acompanhavam e observavam, eram verdadeiros marcos de história, testemunhas do tempo, testemunhas de que ali, naquele espaço, era permitido crescer de forma saudável, com a terra, com as pedras, em comunhão com a natureza, com o risco, com a aventura, com a relação, com a amizade e mais do que tudo isso, era permitido gravar estas memórias tão valiosas no nosso pensamento, e torna-las vivas por todos os tempos. Era o tempo em que o brincar se tornava simples e fortalecido de experiências e provocações, o tempo de outrora com necessidade de ser relembrado hoje e amanhã, em prol de uma educação mais saudável e próxima ao real sentido das crianças, dos interesses, das necessidades, ...

E o brincar é, sem dúvida, uma necessidade.

Tantos anos depois, esta é a profissão que abraço, a profissão que fundamentada na minha infância, me fez tornar no que sou, no que acredito, no que tanto anseio em mostrar que é importante. Esta profissão foi aquela que abracei durante anos, a que abraço e que me motiva a continuar.

Ano após ano, não será considerado um verdadeiro prémio, quando aqueles que passaram por nós e nos encontram, nos contam, alegremente, as suas conquistas, os seus feitos, a realização dos seus sonhos e nos abraçam? Alguns em silêncio, outros de olhos humedecidos, com uma expressão de gratidão, exprimem o sentimento de agradecimento por todas as oportunidades criadas que se tornaram fundamentais para a aventura, para o risco, para a criatividade, para a capacidade de sonhar, para crescer. Outros, ainda, e num emaranhado de braços, apenas tornam o obrigado como o melhor prémio que qualquer educador pode receber.

É este combustível que me move e me faz acreditar que este é o caminho, o difícil é lutar contra a resistência, mostrar que não é só entre paredes que se faz a educação, esta faz-se de portas abertas, esta faz-se num caminho de comunidade, de partilha... Esta educação faz-se acreditando que brincar é a melhor forma de aprender, esta faz-se valorizando as experiências da rua, as roupas rasgadas e sujas que são o registo de uma infância feliz.

Agora que, após tantos anos de trabalho, começo a chegar ao fim da minha carreira, sento-me, cansada, quando chego a casa, apesar de ainda permitir que tudo isto aconteça no grupo que tenho, concluo que ainda não entenderam a minha profissão, mas com a minha idade, chego cansada e com vontade de parar. No entanto, quando diariamente me desloco à escola, essa vontade desaparece, e reconheço que ainda sou importante neste processo de educação. E isso, mais do que me fazer sentir cansada, faz me sentir realizada, faz-me pensar que valeu a pena todo este tempo de luta, todo este tempo de acreditar que é possível escutá-los, desafiá-los, permitir e deixar que sejam crianças...

Eu continuo com atenção a tudo isto e faço para que cada dia seja realmente feliz, e tu, desafias-te a tornar os dias daqueles que te são confiados dias verdadeiramente felizes?

Mesmo que não tenham entendido a tua/nossa profissão, fazes para que a entendam e a tornem especial e seja valorizada?

A valorização depende de cada um, depende de todos…

#umacaixacheiadenada

Rui Inácio

Comentários

  1. Fantástico, que excelente descrição daquela que é a melhor profissão do mundo.
    Obrigada 👏👏👏

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  2. Artigo excelente. Desafio-me também a cada momento. Incrivelmente de acordo. Abraço amigo.

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  3. Identifico me imenso com estas palavras, deixar as crianças serem crianças é urgente.
    Proporcionar-lhe experiências diferentes com novas descobertas e conquistas. Responder aos seus desejos e apelos... Obrigada pelas partilhas.

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  4. Mais uma excelente reflexão, aliás como todos os seus textos, era tão bom que fosse permitido ser assim, está tudo formatado naquele " currículo uniforme pronto a vestir tamanho único"...

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