"Um pau não serve para nada!


O toque da campainha poderia indicar a saída para o parque, mas já o toque soava, quando todos estavam na rua. As restantes turmas do 1º ciclo, perfilam-se e aguardam que chegue quem os encaminhe para as salas. O pré-escolar continua a aventurar-se naquele parque, cheio de árvores, de terra e de paus.

Ausentes de qualquer formalidade escolar, afastados das mesas e das cadeiras, constroem conhecimentos, valorizados por quem os acompanha. As sombras das árvores são as companheiras de brincadeira, as árvores permitem que, entusiasmados, sujem as roupas, os sapatos e as mãos e, o que se pretendia que fosse apenas um recreio, tornou-se um espaço sem limites de exploração, diversão, brincadeira e de socialização. Quanta aventura vai surgindo, construída pelas mãos dos mais pequenos, quantos desafios, quantos problemas, quantos erros lhes surgiram, além disso, quantas soluções foram eles capazes de encontrar!

Ao longo do parque agrupam-se de forma espontânea, consoante os interesses que revelam, consoante as amizades e as brincadeiras.

As árvores viram desafios, viram-se companheiras nas subidas e nas descidas, viram suporte para os baloiços, para as cordas que os fazem subir até lhes chegarem aos ramos. Os ramos, estendidos, tornam-se tão altos, que sozinhos, tornam-se quase impossíveis de alcançar.

Debruçados na criatividade, na imaginação, deixam a areia, a terra, que dizem ser suja, escapar-se-lhes por entre os dedos. Os buracos viram panelas, os paus viram colheres e a areia belos manjares à espera de um júri rigoroso, pronto a rejeitar tanta dedicação e criatividade.

O júri observa, ao longe, sem se envolver e, muitas vezes, sem valorizar. Cuidadores, dispostos a regar e a cuidar estes seres vivos, que valorizam o tempo de crescimento em estufa, protegidos de todos os perigos que um parque de arvoredo esconde, protegidos de todos os insetos que lhes possam tocar, protegidos de todos os argumentos dos donos destes seres. São seres de estufa em que, quase não se podem mover, em que a estufa se torna como um espaço de crescimento, totalmente controlado e dele saem, ao fim de algum tempo, de acordo com os parâmetros exigidos como normais.

Quão fácil se torna assim a educação.

As estufas isolam os perigos, os erros, a exploração e a criatividade. Embora em momentos de brincadeira no exterior, alguns seres se sujeitem a subir e descer árvores, a baloiçar-se ou simplesmente, a cair, e mais do que a cair, a levantar. Poucos são os cuidadores que valorizam estas experiências. São explorações que não são fáceis de registar, que não são fáceis de definir as conquistas, ou simplesmente, que não são valorizadas. Porque tais jardineiros ainda se encontram acorrentados a grelhas, adquiridos e não adquiridos.  

Eles continuam a brincar parque fora, ora acompanhados, ora mais sozinhos, recorrem a todos os materiais que encontram, pedras, paus, folhas e, mesmo sem saber o que fazer vão guardando-os e carregando-os na mochila, com o objetivo de os levar para casa.
Em quantas recordações estes se tornam… guardados nas mochilas, guardados na memória.

Todos valorizam estas brincadeiras, ou pelo menos, tendemos a partilhar todos os artigos que vemos sobre o brincar, sobre o parque exterior, sobre o quão bem faz às crianças de explorarem e de brincarem na rua. E, não é tão bom reconhecer estas potencialidades? Não é tão bom dizer que valorizamos o espaço exterior como um espaço cheio de oportunidades? É de tal forma importante que, valorizamos nas redes sociais este espaço, e descuramos o seu real significado e valor nas nossas práticas.

Enquanto brincam, duvidam da sua própria capacidade, apenas, porque não foram permitidos tempos que permitissem a exploração, a diversão, a socialização, a liberdade de brincar na rua. Os paus tornam-se elementos estranhos, as árvores são apenas obstáculos que os torna frustrados por não reconhecerem nelas oportunidades de brincadeira, de aventura, de exploração. As pedras servem, apenas, para atirar uns aos outros, tendo-se perdido a capacidade de construção, de diversão, de jogo com as mesmas. Os paus são apenas elementos partidos das árvores sem qualquer utilidade, que incomodam e os impedem de brincar.

Enquanto brincam, ignoram os paus que estão junto deles, que oportunidade estão a perder. Nunca, até hoje, lhes permitiram, lhes mostraram que é possível mexer nos paus e, torna-los elementos que podem utilizar, construir, brincar… “Os paus não servem para nada”.

Desafiado por esta afirmação, o pau torna-se um lápis, um simples pau, que consegue desenhar, escrever, rascunhar, traçar,… um pau que é um, e um só e simples pau…. Com tantos paus que por ali se encontram, ligando um pau e depois outro, dá-se vida, dá-se imaginação, levando-os a crer, que qualquer que seja o elemento que encontrem tem utilidade, e, por si só, ganha vida na forma como o utilizamos, como o imaginamos.

Mas quão difícil é fazê-los entender, até então, tem vivido protegidos nas estufas, tornando-os em flores de estufas incapacitados de usar a imaginação, a criatividade, a liberdade de brincar, o erro, a experimentação,…

Que futuro riscado, que futuro arriscado estão a construir? Arriscado, não o é, porque não se permite que errem. Riscado, também não é, pois não revelam essa capacidade sem ser com um lápis ou com um marcador.

Afinal, qual é a potencialidade reconhecida por cuidadores, pais, auxiliares, ministros, comunidade no espaço do exterior?

Quais são as maiores preocupações para os tempos de hoje: tornar crianças reprodutoras de informação, ou crianças ousadas no conhecimento e no desejo de saber mais?

Que se partilhem opiniões, que se valorizem artigos, exposições e tomadas de posição, mas mais do que se defenderem práticas nas redes sociais, que as partilhem e as utilizem como exemplo, como alerta para as crianças que se estão a criar hoje em dia.

Ousemos a desafiar os mais pequenos a pensar.  Ousem-se a refletir no que partilham, ousem-se a ler, a reler e a debater a importância do brincar. Sejam ousados, e não se limitem a partilhar artigos, documentos, livros, que falem na importância do brincar. Mais do que partilhar, tornem reais essas práticas!

O brincar é, de facto, importante para as crianças, a  rua é, sem dúvida alguma, um espaço cheio de potencialidade de crescimento, de exploração e de aprendizagens, e os adultos são, sem dúvida, elementos importantes que potenciam o espaço exterior, que valorizam o brincar e mostram, aos mais conservadores, o quão importante é deixa-los explorar e ter contacto com o erro, com a ousadia, com a aventura e com as quedas.

Não queiram ser jardineiros de crianças de estufa, de crianças de laboratório, de crianças de recobro… tornem-se verdadeiros jardineiros de crianças silvestres que crescem de forma livre, através do brincar, sem cercas ou químicos, que permitam o crescimento ao seu ritmo ou, excessivamente, protegidas. Deixem sê-los, que por si só, já exige muito de cada um de nós.

E, num futuro, quando alguém encontrar um pau, ao invés de dizer: “um pau não serve para nada”, que saiba afirmar, “um pau, pode ser o meu melhor brinquedo”.

#umacaixacheiadenada

Rui  

Comentários

  1. Adorei o texto e concordo. Muitas crianças perdem a criatividade e deixam de ver utilidade em paus e outras coisas da natureza por estarem sempre em casa com jogos em tablet ou telemóvel sem “perigo “ de caírem e esfolarem os joelhos na rua.

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