Por favor, não contem aos pais que eles andaram fora da sala, chegaram cansados e dormiram!

A sala perdeu as paredes. 
As pernas tornam-se o melhor meio de transporte e levam-nos até onde cansaço nos permitir. Apesar de largos minutos  a andar, a vontade em continuar não desaparece, a vontade em explorar outros sítios aumenta e, a cada canto, encontram-se verdadeiras obras de arte. 
Alegres, mostram caminhos, pormenores do bairro, casas conhecidas, cantos que lhes transmitem memórias e que são fruto de conhecimento que iniciaram em casa. 

Que caminhos seguimos, os que os adultos querem, ou aqueles que os mais pequenos definem? 

Saímos à rua e, apesar de cansados, foram até onde os olhos deixam alcançar, foram olhar o rio de um ponto alto, até viram a outra margem, olharam as peças de arte expostas na parede,  e com isto, viveram momentos que na sala não poderíamos sentir, ouvir, cheirar, apreciar, ou simplesmente, viver. 

Que obras de arte encontramos? Todas, casas pitorescas, calçadas gastas e cheias de histórias, vidas que passavam por nós, em passo apressado, de um para o outro lado e apesar do frio, os casacos protegiam-nos e faziam-nos querer continuar. 

As faces estavam rosadas do esforço e do frio que lhes batia na cara. Continuaram vermelhas até ao fim, mas os sorrisos, as palavras que expressavam satisfação e entusiasmo eram muitas, afinal, saíram da sala e parece que nunca o tinham feito. 

Quantas oportunidades vividas numa caminhada pelo bairro, que conhecem melhor do que ninguém, e que, com orgulho o mostram sem qualquer preconceito ou desvalorização de cada tijolo, de cada pedra... e todas contam histórias, só falta mesmo quem as ouça. Nós fomos ouvir.  

As paredes cresceram, tornaram-se invisíveis, vemos os comboios que passam apressados, vemos as linhas de comboio, que se acompanham uma à outra ao longo do que a vista alcança, ganhamos tantos diálogos, tantas experiências, mas só ganhamos se ouvirmos, se formos sensíveis ao que nos dizem. Os adultos não são detentores de todo o conhecimento... Eles caminharam a meu lado, e caminhamos juntos por estradas íngremes e planas, que apresentam tantas dificuldades, por muros que nos cercam e não nos deixam olhar além deles, e nós bem ensinados que estamos, mantemo-nos apenas ao nosso nível, sem querer transpor, ou sair das paredes ou muros que nos cercam. Estamos acomodados, entre quatro paredes, estamos, só, entre quatro paredes.  

Ousamos a ir? Ousamos a sentir?  Ousamos a ouvir? Ousamos a desafiarmo-nos?

Ousem... As aprendizagens que fazemos tornam-se tão claras, tão cheias de tudo e de conteúdos... (Isto se pensarmos apenas em conteúdos.) 

Depois de 1 hora de caminho, de olhar, de observar, de caminhar, de questionar, de ouvir, as pernas acusam cansaço, são crianças e, apesar de tudo, de toda a energia que têm, começam a revelar algum cansaço,... As pernas tornam-se pesadas, os braços carregados, os pés quase que não se levantam do chão, e a vontade de sentar e de estarem deitados nos chão é tão grande! E porque não?

Foi uma exploração pedagógica fabulosa, mas que, mesmo cheia de cansaço. de espaços de maior risco, foi uma grande exploração aos comportamentos a ter, à sensibilização, à vivência em ambientes menos sobreprotegidos, a ambientes da comunidade que fazem parte do ambiente escolar. Se fazem parte do bairro, porque não os tornamos espaços educativos/pedagógicos? Porque só se veem potencialidades entre quatro paredes? Porque deixamos de aproveitar estes espaços para alargar os horizontes destes pequenos. Porque os braços dos adultos estão cansados, porque as pernas dos adultos estão pesadas, e melhor do que andar e andar pela rua, só mesmo a sala com quatro paredes, só mesmo a cadeira que suporta o peso do nosso corpo cansado e acomodado à sala.  

Mas por deixamos de sair? Porque deixamos de aproveitar estas oportunidades? Porque não valorizamos os espaços além sala? 

Deixamos de o fazer por duas razões: por tudo e por nada... Deixamos a rua e tornamo-nos seres enclausurados... e pior do que o fazermos a nós mesmos, é fazermos às crianças que temos a nosso cargo. 

Mas voltemos ao passeio... 
Já está a terminar, chegados à escola, mesmo cansados, correm apressados ao longo do parque, o cansaço desapareceu e agora, mesmo na escola pública, estão a dormir, apesar de como tanta gente diz, "é proibido"! É? 

Conhecer as potencialidades, as necessidades, as prioridades, é proibido? É proibído ser educador atento às necessidades que cada um deles tem?´

Neste momento, a sua necessidade é descansar. E quanto importante é criarmos condições para que isto aconteça, para que se mostre que o sono é fundamental na vida das crianças. Para quê evitar momentos de descanso, em que a necessidade de dormir é tão grande? 

Ignorando qualquer sinal de cansaço ou de necessidade, acabam por adormecer prostrados na mesa, com uma postura que não é de todo a correta, em que as condições não se criaram e, muito menos se potenciaram momentos de tranquilidade. 

Foram à rua, mesmo com frio, chegaram cansados, depois de uma hora a andar sem parar. E agora, estão a dormir, mesmo sendo proibído na escola pública. 

É apenas um desabafo, sem importância, mas peço-vos, não contem aos pais que eles andaram muito, que  estiveram tão longe da sala, que não passaram a manhã sentados a fazer uma ficha para por no dossier, que apanharam frio nas bochechas e que andaram em estradas movimentadas. E mais, não lhes contem, por favor, que eles chegaram cansados, e que, ainda por cima, permitimos que dormissem e descansassem tranquilos. 

Se alguém vos perguntar, digam, apenas, que os deixamos sonhar, que permitimos ver além do que poderiam ver fechados na sala e se não for suficiente, digam apenas que criamos condições para dar continuidade a todas as suas curiosidades e necessidades que apresentaram... 

#umacaixacheiadenada

Rui 

Comentários

  1. Excelente! Mesmo mesmo mesmo isso! Belo texto: "(...) É apenas um desabafo, sem importância, mas peço-vos, não contem aos pais que eles andaram muito, que estiveram tão longe da sala, que não passaram a manhã sentados a fazer uma ficha para por no dossier, que apanharam frio nas bochechas e que andaram em estradas movimentadas. E mais, não lhes contem, por favor, que eles chegaram cansados, e que, ainda por cima, permitimos que dormissem e descansassem tranquilos. "

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    1. Muito obrigado pelo comentário e pelas suas palavras, mas por favor, é segredo! Não conte a ninguém! :)

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  2. O livro foi outro, não tem folhas, tem vidas, cada um pode ser o autor e leitor. No regresso, cada um carrega aprendizagens sentidas.

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    1. E não são estas páginas que mais valor têm? As páginas que não se veem mas que estão no interior de cada um, que registam tudo o que vivem, o que experimentam, que os ajuda a crescer e a ser. :) Obrigado pelo seu comentário!

      Rui

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  3. Olá Rui. Já à algum tempo que sigo o seu blog que gosto imenso e já subscrevi :) Hoje dou-lhe os parabéns por este texto que está particularmente interessante e muito bem escrito. É uma lufada de ar fresco na "nossa" área de educação de infância.

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    1. Olá Margarida, agradeço, bastante o seu comentário, é bom perceber, que vou tendo seguidores que partilham opiniões semelhantes, e se sentem desafiados a ler e a refletir acerca de cada temática que vai surgindo! É de facto, uma urgência termos espaço para pensarmos, para nos desafiarmos a sair da nossa zona de conforto e acreditar que, cada vez mais, a voz das crianças seja ouvida! Agradeço, de forma sentida, o que escreve!

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  4. Bom dia Rui,

    Quero dizer-lhe que o amor que dá a essas crianças é o que mais importa para eles. Que o seu exemplo possa servir para muitos outros.
    Digo ainda que tenha sempre coragem. Mesmo que um dia esse caminho fique difícil, e tenha de mudar, certamente que será para ter um impacto ainda mais alargado, a muitas mais crianças, quem sabe se pelo país fora.

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário, é o que faço diariamente, é o que acredito, é acima de tudo, valorizar as crianças que me confiam e fazer com que passem uma boa experiência no pré-escolar. A mudança faz parte das nossas vidas, importante mesmo, é não nos acomodamos ao sempre fiz assim, ao sempre foi assim, ao dizem que é assim! Muito obrigado, abraço.

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