"Vou para a sala, porque os meus miúdos já estão cansados da rua e precisam de fazer atividades"

Três semanas já passaram e, como o tempo tem permitido, a rua tem sido o melhor sítio
para estar, explorar, correr, trepar, desenvolver relações e para adaptar.

O espaço exterior continua a representar uma infinidade de oportunidades que não são possíveis de explorar em sala.

Correm, em grupos, divertidos pelo recreio. Balançam-se, em par, nos brinquedos com esse propósito. Passeiam-se, sozinhos, nos triciclos puxados com a sua força e empenho, a diferentes velocidades.

O sol brilha e as cabeças estão protegidas pelo chapéu azul. Mas as brincadeiras continuam a acontecer.

Espalhados pelo espaço, vamos sendo solicitados para brincar e entrar nas brincadeiras. Deito-me no chão e, depressa, desapareço no meio de pernas, braços, cabeças, 5 ou 6 miúdos, divertem-se comigo, a puxar-me os braços, a puxar-me as pernas, a cavalgar, a fazer tudo o que lhes for permitido.

Levanto-me e utilizo a bola para jogar, de facto, futebol não é a minha praia, mas fazem com que eu seja o Cristiano Ronaldo da escola, pois ficam impressionados com cada toque que faço, e eu esforço-me para parecer o melhor.

A brincadeira não termina... Alguém me puxa um braço e leva-me para uma das casas do exterior. Baixo-me e, bem encolhido, consigo entrar e aproveitar o belo lanche que me prepararam. À espera está uma mesa recheada das melhores iguarias, uma mesa recheada com dedicação... Uma mesa com sabor a imaginação.

Como deliciado, mas para sair, vou ter de rebolar fiquei de tal forma cheio que o movimento não me permite sair de outra forma.

Saio da casa e puxam-me para o escorrega, mas neste, não poderei andar, apenas os empurro e deixo que se divirtam sob o meu olhar atento. 

A rua leva a que haja movimento, interação, imaginação, leva a que a palavra brincar ganhe sentido e seja reflexo dos seus interesses e das suas iniciativas.

Acompanhamos sempre que nos solicitam, aventuramo-nos sempre que conseguimos ou quando o nosso corpo permite. Ou, ao invés do corpo, quando a nossa capacidade de interação, de relação, de imaginação e de brincar o permite.

Continuamos nas semanas de adaptações, e ao fim de 3 semanas, a preocupação por embelezar a sala já se faz sentir, a necessidade de querermos fazer atividades torna-se evidente. A vontade de os querer sentar entre quatro paredes, com o sol a brilhar lá fora, torna-se uma ordem.

Mas a porta da sala continua sem o nome da mesma, sem a identificação das crianças. No entanto, quer eles, quer os pais já sabem onde fica a nossa sala. Daí pergunto, valerá a pena gastar tempo em colocar o nome da sala, de forma perfeita, na porta? Mas atenção, a sala mantém-se intacta, de paredes vazias, sem trabalhos expostos...

A nossa sala é neste momento a rua, e isso não me incomoda... A prioridade não são as paredes, não é a porta, não são os cabides. A prioridade é a adaptação e, ao fim destas 3 semanas, quando chegam posso verificar que vêm a correr de sorriso no rosto e, ogo pela manhã, abraçam-me como se não me vissem há muitos meses.

A prioridade é deixar os pais descansados quando viram costas, atarefados com a sua vida laboral, e verificam que os filhos ficam a brincar, na rua, de sorriso no rosto.

A prioridade é conseguir estabelecer uma relação vinculativa com todos eles, independentemente do estatuto social, das crenças, ou da nacionalidade.

A minha prioridade é ser o educador que sou e que sempre fui, priorizando o ser criança diariamente. E se possível, pensar, refletir e melhorar o que faço diariamente.

A minha prioridade é mostrar que, a rua tem potencialidades que não são facilmente reconhecidas pelos adultos. Mas questiono, quão valor damos a esta prioridade? Que reconhecimento damos às potencialidades que o brincar ao ar livre lhes proporciona?

E, ao fim de três semanas, a prioridade é fazer "ouvidos moucos" a frases:

"Vou para a sala, porque os meus miúdos já estão cansados da rua e precisam de fazer atividades"

Cansados... Cansados estão os adultos...

#Umacaixacheiadenada

Rui

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