Se ser educador é isto.... Então vou fazer as malas e abandono, agora, a profissão.



Chego a casa, cansado, das burocracias que nos ocupam, dos papéis que temos para preencher, das "picuinhices" que tantos pais têm ao longo do dia.

Quando alguém está doente, insistimos, o quanto importante seria que se mantivessem em casa para recuperar... são miúdos que precisam de atenção, de recuperação. Se entendemos isso quando estamos doentes, porque não entendemos quando os mais pequenos estão?

Mas cansa... cansa a forma como alertamos os pais para o bem-estar dos próprios filhos, porque no fundo, não é a nós que incomodam, não é a nós que prejudicam, mas aos próprios filhos.

Mas, se isto é ser educador, então faço as malas e mudo de profissão.

Diariamente, sou confrontado com uma pilha de papéis relativos a cada criança, com preocupações que, bem espremidas, em nada têm a beneficiar os mais pequenos, beneficia, apenas, quem está sentado acima de nós, porque serão apenas documentos obrigatórios, certo que da nossa competência a preencher, mas que no fundo, em nada refletem aquilo em que pensamos, em que fazemos, ou em que acreditamos. Em nada refletem a nossa prática. Em nada refletem o mais importante da profissão, as crianças.

Fazemos, apenas, porque dizem ser obrigatório.

Monta-se uma secretária ao fundo da sala, a pilha de papéis continua a crescer e o que se pretendia ser uma profissão de afeto, de desafio, de criação de oportunidades, torna-se numa profissão em que as crianças ficam em segundo lugar, em que os interesses que defendemos ficam para trás, em que o brincar fica esquecido na gaveta inferior do lado direito da secretária que acabei de instalar no meu agora renovado escritório.

Mas, se ser educador é isto, então vou fazer as malas e mudo de profissão.

Somos uma classe que critica, que se esquece de pensar porque fazemos, que se limita a embelezar a sala para que o agrado e o reconhecimento dos pais seja o mais elevado possível. Mas esquecemos, que quem temos de agradar, são aqueles que estão connosco diariamente, com quem temos um compromisso: ser promotores e desafiadores de oportunidades, as crianças.

Mas, se ser educador é isto, então vou fazer as malas e mudo de profissão.

Se na nossa profissão somos confrontados, diariamente, por imposições sociais que tendem a escolarizar, de forma absurda, a educação de infância que temos e deixamos de olhar no sentido mais puro, o brincar, e o tendemos a substituir por interesses políticos, económicos e sociais, esquecemos a verdadeira essência desta fase. Desviamos caminhos e ceifamos a criatividade, o espírito crítico, a reflexão. Levamos a que os desafios não reflitam as reais necessidades de cada criança que está a nosso cargo, fazemos porque nos dá jeito, porque nos foi pedido.

Mas, se isto é ser educador, então vou fazer as malas e mudo de profissão. 

Mas hoje recebi uma visita. Recebi um desenho, um pequeno convite, uma memória de um reconhecimento eterno pelas experiências que a permitiram ser criança.

Se saio cansado diariamente? Sim, muitas vezes.

Mas hoje, saio com um sorriso de orelha a orelha.

Esta visita, com este pequeno gesto, relembra-me o quanto somos e continuamos a ser especiais. E, se por vezes, penso, que ao longo do tempo somos esquecidos, também penso que, haverá crianças que nos estarão eternamente gratas e que nos guardam ao longo das suas vidas, nas memórias de infância. E, quando nos visitam, o abraço vale mais do que as palavras que parecem embrulhadas naquelas pequenas línguas. Um misto de emoções que faz sentir, de novo, os meus abraços, que os envolveram durante alguns anos. Mas digo mais, não fiz nada de outro mundo, limitei-me a deixá-las ser crianças, só isso! Limitei-me a acreditar em todos e em cada um. Limitei-me a mostrar-lhes que sabem pensar, que poderão sonhar, que poderão falhar e aprender com esses erros. Limitei-me a fazê-los acreditar que cada passo que dão trará os seus frutos.

E se isto é ser educador, em vez de fazer as malas e mudar de profissão, vou guardar as malas cheias de recordações, que me lembram, diariamente, o quanto é bom ser educador, o quanto é bom participar no crescimento destes miúdos e permitir que mantenham um sonho, o sonho de ter sido e de continuar a ser criança.


#umacaixacheiadenada

Rui

Comentários

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    1. É verdade Rui tantas vezes nos sentimos cansados e com vontade de deixar de ser educador. São esses gestos simples que nos fazem ver que temos a melhor profissão do mundo.

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  2. Olá Vera, obrigado pelo seu comentário. São apenas sentimentos que se transformam em palavras! Muito obrigado!

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  3. Excelente Rui...é esse o sentir de muitos de nós...mas somos também persistentes e continuamos em nome das CRIANÇAS.

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  4. Excelente, mesmo. Tudo o que eu sinto, em palavras. Parabéns pelo texto.

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  5. Mais palavras para quê?
    Está tudo dito ������

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  6. Ola Maria, obrigado pelo seu comentário somos profissionais que nos damos sem medida, e a persistência é o nosso segundo nome! A vivencia diária e pelas criamcas e para as crianças! É nisso que acredito!

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  7. Obrigado Paula pelo feedback! São sentimentos que se tornam visíveis pelas palavras! Obrigado!

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  8. Esse reconhecimento por parte das crianças acaba sempre por superar as dificuldades que vamos sentido no dia-a-dia... Parabéns pelo texto, reflete bem o minha experiência enquanto educador de infância.
    Rui Horta

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    1. Obrigado pelo seu comentário, Rui. De facto, os nossos dias enchem-se de burocracias, que nos desviam dos reais interesses da educação. Mas, as nossas convicções tornam-se vincadas quando recebemos estes elogios, e que abanam para o que é realmente a nossa profissão! Abraço!

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  9. Não sou educadora, mas sou professora do 3° Ciclo (também educadora, portanto...), e feitas as devidas adaptações, reconheço-me em cada palavra e em cada sentimento. Parabéns pelo texto.

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    1. Olá Ana, muito obrigado! Mesmo numa faixa etária diferente, continua a ser educadora!
      Muito obrigado!

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  10. Uauuuuu 😍 É isso mesmo!! Eu só tenho a agradecer, não é educador da minha filha mas está com ela constantemente, diariamente e por isso também contribui para o crescimento feliz dela. Obrigada! Obrigada pelo texto, pela reflexão e pelo sentimento. Um beijinho ❤️

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  11. Compreendo muito bem o desabafo! Disse muitas vezes: 'Estou farta da Educação! Vou é para cabeleireira!'. O único 'mas' que aqui sugiro, prende-se com uma frase sua que resume alguma da tonalidade do texto e que se calhar nos ajudará a todos a reflectir: "Mas digo mais, não fiz nada de outro mundo, limitei-me a deixá-las ser crianças, só isso!" - Acredito que os Educadores, quando são Educadores a sério e não de 'bancada', fazem mesmo 'coisas DE outro mundo', já que quando somos crianças somos ETs... Acredito também que a expressão 'ser criança' transporta, em si mesma e pela sua própria natureza, a conflitualidade presente no território da educação. De facto, 'ser criança' não é a mesma coisa para toda a gente. Se calhar existem muitos educadores que se identificam com o seu discurso; outros, pensam que se identificam; outros ainda, não se identificam de todo; e existirão também aqueles que não compreendem e/ou não se interessam pelo problema que tal afirmação levanta. Creio que os Educadores teriam muito a ganhar se começassem a definir com clareza cada uma das palavras-chave que utilizam - para si, para os outros profissionais, para não profissionais - dispondo-se à sua discussão (no sentido etimológico do termo). Caso contrário, continuaremos a elaborar um discurso cada vez mais fechado e estranho, em que o trabalho do educador aparece rodeado de uma aura de mistério e de mística, dando a ideia que, nesse "limitei-me a deixá-las ser crianças, só isso!" não há suor de um exigente trabalho de planeamento, preparação, interacção, observação, análise, tomada de decisões... com muito estudo para melhor fundamentar e organizar as nossas práticas. Obrigada.

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    1. Olá Teresa, Obrigado pelo seu comentário! Ao escrever o texto, e ao referir a frase que citou, apenas quero salientar a importância que nós, educadores devemos dar ao facto de serem crianças! De facto, permitir que sejam crianças, é muito mais trabalhoso do que o contrário. Para mim, e quando o disse, da forma como o disse, é tornar-me consciente da capacidade que as crianças têm para projetar os seus planos; é ser companheiro nestes desafios diários, é fazer com que eles se construam, é mostrar e alargar as oportunidades que vão surgindo, no fundo, é tornar intencional o brincar que desenvolvem diariamente. É aproveitar cada momento como exploração, construção, aprendizagem. O "limitei-me a deixá-las ser crianças" é encontrar o verdadeiro sentido da palavra, em que o brincar é palavra de ordem. E eu, enquanto educador, demonstrar a capacidade que tenho de escuta ativa, de aprendizagem cooperada, de seguir interesses tão próprios como os deles. É conseguir motivá-los e para aquilo que querem, é provocar interações entre eles, partilha de conhecimentos, e acima de tudo, o crescimento conjunto, baseado e fomentado na saber cooperado. Muito obrigado pela sua crítica e chamada de atenção!

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  12. Sou auxiliar de educação e tenho exatamente o mesmo pensamento. Por favor NUNCA faça as malas e abandone essa profissão, porque as nossas crianças precisam de crescer com pessoas como o Rui. Não o conheço mas reconheço que cada palavra do seu blog é verdadeiramente sentida. Parabéns!

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    1. Olá Sónia, de facto, o que escrevo é o mais puro do sentimento. Olho para cada momento de forma simples, mas com um significado enorme, com uma potencialidade fabulosa para desenvolver aprendizagens, para dar mais espaço à brincadeira! Obrigado pelo seu comentário!

      Rui

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  13. Olá Rui! Texto maravilhoso que nos deixa a reflectir...quando o Rui entrou na Marteleira e eu soube que iria ser educador da Maria Reis fiquei um pouco inquieta pois a Vanessa dava-lhe muito colinho e mimo e como ia ser com o Rui? fui presenciando os afectos e hoje a Maria ainda fala com imenso carinho no Rui...é uma pessoa maravilhosa e isso reflecte-se no excelente educador que é...como mãe obrigada! E espero que não seja só o jardim de infância a olhar para a importância de se ser criança mas os ciclos seguintes pois com muita tristeza assisto a revolta da Maria que quer tempo para brincar e não quer passar tanto tempo sentada numa sala (este ano diagnosticaram-lhe dislexia, vai chegar lá...mas precisa de mais tempo e dedicação, mas quem se importa com isto!? há metas a cumprir...e os nossos meninos são números e assim deixam de ser crianças!). Obrigada Rui por fazer a diferença nas nossas vidas!

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    1. Olá Lena Reis, muito obrigado pelas suas palavras! É fabuloso ler o que escreve e que, acima de tudo vamos marcando a diferença na vida destes pequenos. Infelizmente, o nosso ensino nem sempre está preparado para receber a diferença, que não é diferença. Todos somos diferentes, todos precisamos de necessidades especiais, o segredo
      e aprendermos a lidar com cada caso! A Maria é uma miúda cheia de vida, interessada, que depressa conseguirá ultrapassar as dificuldades que vai sentindo! Não desista! Continue a acreditar e faça com que ela também não desista... Agradeço mais uma vez as suas palavras, e disponibilizo-me para o que quer que seja, sabem onde me encontrar! :)

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  14. OBRIGADA. Rui Inácio. É isto mesmo. Adoro ensinar mas isto? Sinto muitas vezes a vontade de abandonar, mas aoolhar para alguns meninos não sou capaz. Nasci para o ensino. Todavia, estou cansada... 31 anos.

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    1. Obrigado pelo seu comentário! 31 anos é uma vida, cheia de lutas, de vitórias e de cansaços! Mas, de facto, é pelas crianças que trabalhamos, embora se estejam sempre a intrometer entre nós, é por eles que nos esforçamos e que fazemos o possível e o impossível. Obrigado pelo seu testemunho! Rui

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